Código Deontológico da Ordem dos Médicos: Atavismo Sociológico

Tem causado bastante celeuma o atrito entre o Estado e a Ordem dos Médicos relativamente à recusa desta em alterar o Código Deontológico (de contestável valor jurídico, como já referido por André Pereira e pela esmagadora maioria dos especialistas em direito da medicina) relativamente à alteração do Código Deontológico no sentido de excluir a qualificação da prática da IVG como falta disciplinar grave. Pouparei alguns bytes escusando-me a ressalientar a irrefutável justeza e legitimidade da pretensão do Estado.

Existem todavia outros atavismos neste Código Deontológico que necessitam também de ser corrigidos.

Atentemos no disposto no Artigo 54º, relativo à esterilização (o que já foi aliás salientado pela jornalista Fernanda Câncio no Diário de Notícias):

(Esterilização)
1. A esterilização irreversível só é permitida quando se produza como consequência inevitável de
uma terapêutica destinada a tratar ou evitar um estado patológico grave dos progenitores ou dos
filhos.
2. É particularmente necessário:
a) Que se tenha demonstrado a sua necessidade;
b) Que outros meios reversíveis não sejam possíveis;
c) Que, salvo circunstâncias especiais, os dois cônjuges tenham sido devidamente informados sobre
a irreversibilidade da operação e as suas consequências.
3. A esterilização reversível é permitida perante situações que objectivamente a justifiquem, e
precedendo sempre o consentimento expresso do esterilizado e do respectivo cônjuge, quando
casado.

Qual a razão da exigência de consentimento por parte do cônjuge da pessoa que procura a esterilização, senão profundo atavismo sociológico? Especialmente tratando-se a fertilidade e a intenção de procriação de um bem jurídico inelutavel e inalienavelmente pessoal?

Qual a justeza de não permitir a esterilização, por exemplo (um caso limite infelizmente extremamente frequente no Portugal profundo), a uma mulher casada, com numerosa prole, que não mais deseja ter filhos, escarecida e consciente das consequências da sua decisão, sem consentimento do marido "macho latino" que se recusa a utilizar métodos de planeamento familiar? Porque é que a Ordem dos Médicos se arroga o direito de impor o seu atavismo a uma decisão que só pode ser íntima e pessoal?

Continuando, o Artigo 38º refere que o esclarecimento e consentimento para um acto médico poderá ser prestado pelo paciente (o doente, na formulação do CD, o doentinho coitadinho) ou pela sua família.

1. O Médico deve procurar esclarecer o Doente, a família ou quem legalmente o represente, acerca
dos métodos de diagnóstico ou de terapêutica que pretende aplicar.
(...)
3. Se o doente ou a família, depois de devidamente informados, recusarem os exames ou
tratamentos indicados pelo Médico, pode este recusar-se a assisti-la, nos termos do artigo
antecedente.

Não perdendo mais tempo que o necessário com o verbo modal empregue "deve", que deveria ser substituído por "está o obrigado a" ou "incorre em falta disciplinar grave se não", saliento outro atavismo sociológico que consiste na alternativa de esclarecer o paciente ou... a sua família! Outra vez tratando-se de um bem jurídico (saúde) eminentemente pessoal e intransmissível. É o paciente, e não a sua família, quem tem o direito de ser esclarecido e de prestar o necessário consentimento. Claro que, atento ao paternalismo da classe médica, ciosa da sua arcaica tradição hipocrática e orgulhosa da sua "arte silenciosa" (uma excelente caracterização do fenómeno, da autoria do Prof. Dr. Guilherme de Oliveira), o doentinho coitadinho não deve nem sequer saber, e informa a família e apresenta à dita família um papelucho ilegível para assinar, muitas vezes chamando ao dito papelucho "termo de responsabilidade".

Continuando ainda a peroração sobre este artigo, o seu terceiro parágrafo castiga o paciente ou a família que não aceitem a terapia proposta com a possibilidade de recusa de tratamento por parte do médico! Ou seja, o paciente ou a sua família têm o direito de ser esclarecidos e o privilégio de lhe(s) permitir consentir na terapia... mas não têm o direito de ser esclarecidos sobre terapias equivalentes, sobre os riscos e benefícios comparativos dessas terapias... Ao total arrepio da moderna doutrina sobre os direitos dos pacientes, bem como da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos e Biomedicina que o próprio artigo refere como inspiração...

Do aduzido concluo que não basta o Ministro da Saúde requerer ao MP que peça a anulação judicial do artigo 47º sobre a IVG... É necessário que o Estado faça tábua rasa do Código Deontológico, elimine quaisquer efeitos jurídicos desse documento, avoque a si o seu poder-dever de legislar sobre esta matéria, e se proponha a aprovar, como na maioria dos países europeus, uma lei sobre os direitos dos pacientes.

Sob pena destes atavismos persistirem.

Declaração de interesses:
O autor é especialista em direito da medicina. No entanto, resulta claramente da sua obra publicada não existir qualquer antagonismo contra a classe médica.


Comentários

Este especialista de direito da medicina anda só a treinar.

Quando fôr grande vai haver gente que comenta o que escreve !

!O doente coitadinho! - paciente, utente, cliente ??? não há gato nem filhós.
CA disse…
Três observações:

1. Consentimento do cônjuge será excessivo mas a informação do cônjuge não é desrazoável. O casamento é um contrato que envolve duas pessoas e também a sua capacidade reprodutiva.

2. Os direitos do paciente e deontologia médica são questões diferentes que devem ser reguladas de modo independente.

3. Se um paciente entra inconsciente numa urgência deve o médico esperar que acorde para o "esclarecimento e consentimento para um acto médico"?
Anónimo disse…
O autor, especialista em direito da medicina, deveria abster-se de omitir, de forma que só posso classificar como deliberada, já que especialista, excertos do referido artº 38º do Código Deontológico. O nº 2 do referido artigo, para o qual remete o final do 3º, diz: "No caso de crianças ou incapazes, o Médico procurará respeitar na medida do possível, as opções
do doente, de acordo com a capacidade de discernimento que lhes reconheça, actuando sempre em
consciência na defesa dos interesses do doente."
É aqui que reside a resposta a parte do seu post, algo verrinoso. O Médico, no exercício da sua actividade, perante a recusa em cumprir ou autorizar a execução do prescrito, poderá recusar-se a continuar o tratamento, "nos termos do artigo antecedente", ou seja, tendo sempre em conta este princípio máximo: actuando sempre na defesa dos interesses do doente.
Julgará, porventura, o autor, que são os doentes os detentores do conhecimento, capazes de, por si só, entenderem e decidirem o que será para si mesmos o melhor?

António Queirós, especialista em medicina, sem antagonismos

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