Momento de poesia



Crónica anunciada do primeiro poema onde entro


Deitei-me tarde, levantei-me cedo. O médico faltou. Fiquei azedo, como se tivesse sarro na boca. Resolvi descer à Baixa Pombalina, onde tudo cheira a História. Entrei na Havaneza para ver os cachimbos. Estão pela hora da morte. Vaguei pela Bertrand à procura do livro que ainda irei escrever. O empregado disse-me que já estava esgotado e que a todo o momento esperavam a 2ª edição. Fiquei irritado por ele não me ter reconhecido.

Cá fora, o colorido dos turistas a animar a rua. Desci ao Rossio e senti o perfume da manhã na esplanada do Nicola. Ali fiquei a saborear a cidade e o seu movimento colorido. A luminosidade de Lisboa é única. Disseram-me que é do reflexo do sol no grande estuário do Tejo. O que é certo é que esta luz enfeitiça os olhos. Talvez por isso, eu tenha começado a olhar para todas as mulheres que passavam e em cada uma delas tentava adivinhar aquela que me engravida as horas com as suas palavras. Senti-me preso nesse jogo, onde era o único jogador. Ganhava sempre. A imagem tornava-se cada vez mais nítida e lembrei-me daquela fotografia do rio Azul, o rio que para mim já não é fronteira, um veio de prata embaciado por neblinas, e era por aquela serenidade da paisagem que eu queria estagiar a minha ansiedade de ler todas as respostas às perguntas que ainda não fiz.

E quando cheguei a casa, sabia que a resposta estava ali, ainda sem ser palavra redentora, na carta que já anunciava o poema, que só depois descobri na outra carta, que também chegara.

O sarro da boca desapareceu e apressei-me a perdoar a lamentável falta de memória do empregado da Bertrand. Ele, na realidade, não poderia adivinhar que eu já estava dentro do poema, e a responder ao grito desta “poeta”, que começa a enlouquecer-me os dias e as noites, a pedir-me que lhe escreva, que a invente, que a imagine, que a sinta, inventando-me a mim próprio como namorado enciumado e invertendo aquele jogo, ensaiado ludicamente na esplanada do Nicola, quando ainda não sabia que já era poema, onde aparecia todo inteiro.

Alexandre de Castro

Lisboa, Idos de Março do ano I do encantamento

Resposta:
Tremem-me as mãos (e não só). Acho que vou ter de sair de aqui a correr. Para respirar. Porque ofego. Porque escreveste um texto lindíssimo, Alexandre! E talvez seja para mim. E só por isso, só de pensar que possa ser para mim, ofego ainda mais. Ofego mesmo. E talvez não me devas imaginar como me imaginas, nem que eu te pedisse, nem que esteja a gostar. E estás outra vez aí a dizer coisas que quero ouvir, mas que não deverias dizer.
A “Poeta”

Comentários

Foska-se!
Vale a pena estar vivo para ler um texto assim ao acordar.
E lembrar a luz de lisboa e logo fugir dela, e estar de férias nos montes da Lapa e nas charnecas de Riba-Côa.
Verdade que lá para o fim há umas neblinas de natureza mais confessional que o embaciam.
Mas o que é que anda a fazer um homem que escreve prosa desta?
A deixar que umas quantas matrafonas literatas tomem conta do bordel?
Porra, homem!

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