Paris ou por quem os sinos dobram…


As declarações do imã da comunidade islâmica de Lisboa, Sheik Munir, no sentido que os bárbaros incidentes terroristas ocorridos em Paris não se identificam com o estipulado no livro sagrado dessa religião deixam no ar algumas questões por esclarecer link.
É verdade que esta também foi a posição ‘politicamente correta’ adoptada por diferentes governos – e entre eles o Presidente da República Francesa link - que se apressaram a separar o fanatismo emergente da religião propriamente dita. Compreende-se que assim seja, quanto mais não seja pela defesa da liberdade religiosa, mas tal facto não basta para que se coloque uma pedra sobre o assunto.

Na verdade, todas as religiões têm o seu percurso histórico. E nesse longo trânsito multisecular existiram vários momentos de fundamentalismo e de perseguições em nome do proselitismo, da blasfémia ou ainda de outros pretextos.
Para não cairmos no perigoso, inoportuno e inconsequente terreno da islamofobia será melhor começarmos pela religião católica.

Dificilmente o Ocidente consegue hoje – fora de uma perspectiva meramente histórica - digerir as Cruzadas e a Inquisição para ficarmos restritos a dois momentos marcantes da ICAR. As Cruzadas por detrás de movimentações com guerreiras voluntaristas embuídas de intenções ‘piedosas’ que não conseguem ocultar pretensões hegemónicas entroncam-se com a necessidade de domínio territorial e de ocupação (entre outros dos emanentes lugares sagrados) para manter um estatuto preponderância político-militar e económica na charneira Europa/Médio Oriente. Começa nestes remotos tempos o percurso da hegemonia europeia que desde o fim da II Guerra Mundial está em profunda crise. A vertente cultural desde empreendimento será também à custa da importação de valores do ‘orientalismo’ que ocupará um lugar pouco mencionado, mas destacado, no Renascimento. As moedas têm sempre 2 faces.
Um outro facto histórico foi a Inquisição. Trata-se de algo correlacionável com a heresia, mas não só. A Inquisição foi, também, um longo, penoso e macabro processo de confisco de bens, de atentado aos mecanismos sucessórios e de incitação ao exílio. Para esse fim a ICAR utilizou o ‘braço armado’ dos mendicantes dominicanos. Na verdade, o efeito imediato e permanentemente ocultado - para o desvalorizar - foi o reforço do poder ‘temporal’. Estes desvarios religiosos levaram à concepção e expansão de ‘ideais iluministas’ onde a razão será apresentada como o motor da libertação dos povos, nomeadamente, da ignorância, das superstições, dos enganos e dos fanatismos. Depois foi a Revolução (Francesa): Liberdade, Igualdade e Fraternidade.  Fiquemos por aqui.

O Islão aparece um pouco tardiamente e desfocado da realidade cristã e do seu trajecto. Trata-se de um processo histórico divergente.
Criando um imenso ‘Império Islâmico’, nos séculos VII e VIII, i. e., logo após a morte do profeta Maomé, e sob a organização política de ‘califados’, o poderio económico dispensou, numa primeira fase, inquisições e intolerâncias. A expansão islâmica ultrapassou esse negro passo inquisitorial e essa nomada ‘cavalgada’ foi contemporânea de um ‘Renascimento islâmico’ (‘Idade de Ouro’ islâmica) que se afirma no Comércio, nas Artes e na Ciência.
É um período onde se exalta o valor do conhecimento e onde cabem afirmações como esta: ‘a tinta dos cientistas vale tanto como o sangue dos mártires' (Hadith).
O declínio deste ‘império’ começa cedo com recorrentes conflitos religiosos internos (entre sunitas e xiitas). E o califado organização teocrática agregadora do poder político-militar e religioso foi sendo dispersa por diversos emires que não detinham a perrogativa da chefia religiosa. Mais tarde, quando o califado, ou os califados, entram em decadência (económica, social e cultural) e acabam extinguindo-se, os emires associam-se aos chefes religiosos (aiatolas, imãs, mulás, ulemas, xeques, etc.) para refazerem uma nova espécie de califado, oculto e diferente. Curiosa é, por exemplo, a coincidência entre o fim do califado otomano e o surgimento da Irmandande Muçulmana (1928) que, no presente, continua a ser notícia.
Na verdade, alguns (muitos) destes clérigos islâmicos não vivem da misericórdia divina. Capturaram as riquezas nacionais ou transnacionais e passaram a comandar (administrar directamente ou por interpostas personagens) a economia e as finanças dos países onde ‘pontificam’. Dividem o seu munus religioso com actividades ‘pecaminosas’ do foro mundano. Logo, no mundo islâmico, está em curso um regresso ao califado, como o recente surgimento do 'Estado Islâmico' demonstra.

Os bárbaros acontecimentos ocorridos na semana passada em Paris podem, de facto, não ser a expressão directa do Alcorão, até porque os livros sagrados são ambíguos e imprecisos (diria ilegíveis para os cidadãos), mas decorrem (e ocorrem) de um denominador comum matricial onde o islamismo é uma marca quase presente e constante. Aliás, dentro de um contexto estrictamente religioso e apesar de múltiplas condenações vindas de vários quadrantes islâmicos, será difícil ignorar as palavras do dirigente religioso iemenita Harit al-Nadhari, simultaneamente membro da Al Qaeda da Peninsula Arábica (AQPA) link para perceber múltiplas disparidades.

Quando o imã de Lisboa se apressa – e bem - a condenar os trágicos acontecimentos de Paris seria bom que, também, se esforçasse para explicar o porquê destas derivas e, nomeadamente, onde e de que modo nascem e proliferam interpretações fundamentalistas do livro sagrado. Existem diferenças – e a comunidade islâmica de Lisboa é disso um exemplo – mas não podemos esquecer os alçapões que começam a revelar-se com demasiada frequência e insistência.
Claro que ninguém exige ao imã de Lisboa que assuma a liderança de um movimento rectificativo e purificador do islamismo mas seria útil que olhasse abertamente para o seu extenso quintal (espalhado pelo Mundo) que está a ser possuído por um incontrolável alvoroço. Seria bom, também, que não fizesse caminho um permanente ‘lavar das mãos’ acerca do caos que aí vigora e, na prática, tem possibilitado muitas barbaridades.

Independentemente de ser imperioso evitar uma ‘questão religiosa’ já que a missão republicana (presente na majestosa manifestação de hoje em Paris) é acima de tudo a mensagem de determinação no assegurar e defender liberdades (de expressão e religiosa, entre outras) parece que o Mundo chegou a uma encruzilhada onde não é mais possível esconder que ninguém aceitará – muito menos por imposição divina - viver sob um clima de medo e subjugado ao terror. 
Surge novamente – e à custa de muitas vidas humanas – um amplo campo de confrontação política, de análise e de consequências, que se querem pacíficas, em que os livros sagrados têm, nesse contexto, pouca, ou nenhuma, relevância.
Bastará universalizar um singular documento (também oriundo de Paris, 1789) – A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen). Que, no seu artigo 11º., reza:
A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.”

Ou será pedir muito?

Comentários

Unknown disse…
Concordo!
Já agora, parabéns por esta opinião tão bem fundamentada!

claudiapereira96.blogspot.com

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