A Páscoa e as PPP no SNS…


Páscoa é um conceito derivado do latim – Pascha – que significa ‘passagem’ embora a expressão tenha uma remota origem hebraica. 
E esta ‘transição’ foi o ritual à volta da extinção (supressão futura) das parcerias público-privadas (PPP) no nosso sistema público de saúde ocorrido nestes últimos dias em relação ao conteúdo de uma nova Lei de Bases a aprovar no Parlamento.
Uma ‘passagem’, isto é, um passo de mágica, de uma natural e possível convergência da Esquerda (de toda a Esquerda) para uma nova fissura causada por um pragmatismo liberal, marcadamente capitulacionista, travestido de moderação.

Será bom recordar o(s) pretexto(s) que estão na origem das PPP. Elas traduziam primariamente um malabarismo de desorçamentação das empresas públicas administrativas (EPA) na construção do deficit público e, teoricamente, permitiriam um maior investimento no sector público.
Mais tarde, com o desencadear da crise financeira de 2008, a teorização subjacente é baseada nas doutrinas neoliberais, onde o papel do Estado tende a atenuar-se e abre-se assim caminho a uma intervenção privada nos sectores públicos que, em múltiplos casos, justificaram enviesadas privatizações de serviços e sectores económicos (incluindo os ‘estratégicos’) e, num terreno intermédio, levam à proliferação de PPP (uma antecâmara da privatização). 

Em Portugal existem vastos antecedentes históricos sobre incidentes evolutivos decorrentes de uma evolução harmoniosa versus conflituosa entre os sectores públicos e privados, que passam pelas misericórdias, corporações, grémios, mutualidades, etc., mas, dirigindo as atenções para o regime democrático, nascido do 25 de Abril, verifica-se que o primeiro passo de abertura do sector público ao privado, dito ‘reformista’ e ‘liberalizante’, resulta da revisão constitucional de 1982, onde o País afrouxa os mecanismos reguladores económicos e financeiros instituídos através das nacionalizações ocorridas em 74-75 e abre-se caminho à ‘economia de mercado’ o que viria a ter como consequência um longo rosário de (re)privatizações e ao aparecimento de formas mistas (PPP) onde o Estado fica com obrigações financeiras e, concomitantemente, assume os grandes riscos inerentes a este modelo.
 
Para exemplo destas situações basta recordar o imbróglio financeiro tecido á volta da parceria inicial do Hospital Amadora-Sintra e, no terreno da ‘economia social’, o descontrolo casuístico no Hospital da Prelada / Centro de Reabilitação do Norte.
Isto é, para além da delapidação do património público com privatizações ‘à balda’ (sem critérios estratégicos) verificada no 'passismo' o que agora se propõe e aceita em relação às PPP é um verdadeiro ‘negócio da China’ (esta evocação territorial não é arbitrária).

As PPP são contratualizações entre o Estado e entidades privadas a fim de assegurar a provisão de infraestruturas ou de serviços e esta disponibilização é – mais tarde ou mais cedo - remunerada pela entidade pública com custos acrescidos de juros e lucros.
Estes deficits (de investimento) estruturais, com reflexos negativos na prestação de serviços, que são a ‘justificação’ das PPP resultam, numa primeira análise, de erros, desvios ou engenhosas manipulações na conceção orçamental e questionam, no essencial, o modelo redistributivo da riqueza em vigor.

Não existem dúvidas que a prestação de serviços públicos pelas entidades privadas tem sido feita à custa de exagerados custos retributivos, frequentemente ocultados ou disfarçados por pretensas respostas de eficiência, muito difíceis de avaliar, em termos auditados, e, ainda, pelo sacrossanto modelo de competitividade fortemente abastardado por uma conceção de prática competitiva entre o público e privado, facilmente domesticável (e cartelizável).
Dito isto, as PPP, nas áreas da saúde, não são mais do que o reflexo do subfinanciamento crónico deste sector, que existe e persiste ab initio no seio do SNS. É a tentativa de tapar o sol com uma peneira.
Quando a Esquerda pretende incluir na nova Lei de Bases a extinção das PPP na Saúde está a tentar defender este serviço público de um mal que se tem revelado como um instrumento estrangulador do seu desenvolvimento, quando não, da sua existência futura. Isto é, as opíparas remunerações que envolvem as contratualizações à volta das PPP deverão ser, para serem realistas, rigorosas e transparentes, incluídas no desenho orçamental rotineiro (anual ou plurianual) e, como tem sido abundantemente revelado, o verdadeiro problema – que nenhum malabarismo consegue iludir - é o subfinanciamento do SNS.

Aparentemente, as PPP são uma maneira de diferir investimento e iludir a orçamentação necessária mas os seus custos - que se prolongam a médio e longo prazo - são difíceis de contabilizar no presente, já que se não se trata só de contabilizar hoje mas sim de hipotecar orçamentos futuros. Trata-se de uma ‘ocultação orçamental’ ou, se quisermos, de criar mais divida pública que fica ‘temporariamente’ escondida, mas que um dia virá à tona.

O fim das PPP na saúde – a gestão de hospitais públicos por entidades privadas - parecia ser uma causa comum da Esquerda com a finalidade de sanear um serviço público pilar do Estado Social – no terreno da orçamentação e do investimento - encerrando as portas que, sub-repticiamente, a Direita abriu com a legislação promulgada no cavaquismo (Lei 48/90) e que complementam a ‘abertura constitucional’ efetuada nas revisões de 1982 e 89.

Os ritmos e os timings poderiam ser diferentes (eram) entre os partidos de Esquerda mas o conceito tinha um denominador comum de aceitação, parecendo existir um amplo terreno consensual entre o PS, BE e PCP para aprovar uma Lei de Bases da Saúde que não sendo ‘revolucionária’, nem disruptiva, corrigia os ‘passos liberalizantes’ da anterior e tinha a dignidade de se identificar com os princípios fundamentais que genericamente informam a política social comum da Esquerda que, por alguma razão, se reivindica de ‘socialista’.

No lavar dos cestos o grupo parlamentar do PS promove um ‘flic-flac’ e decide manter uma frecha aberta para futuras PPP, aparentemente condicionando-as, a um ‘contrato de direito público’ (como se pudessem ser outra coisa), classificando a gestão privada de hospitais públicos como ‘supletiva e temporária’, como sendo uma novidade, mas que na realidade – e pior na prática - pouco ou nada difere do regime em vigor. O PS sabe que os condicionamentos são ‘fogos-fátuos’ e de nada servirão se - algum desditoso dia - a Direita, regressar ao poder.

A ‘vertente social-liberal’ continua a ter uma forte influência no seio do grupo parlamentar socialista e origina uma tal pluralidade, de características fragmentárias e de tendência, que acaba por colocar a equipa governamental – neste caso o órgão proponente da Lei de Bases - em maus lençóis.
Desta situação criada muito mal fica o Governo que partiu para negociações com a Esquerda parlamentar – pelo menos com o BE – vendo posteriormente o grupo parlamentar a exibir uma total subserviência aos conceitos ideológicos do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa (que nunca os renegou), antes pelo contrário.
É fundamental entender a posição de Marcelo Rebelo de Sousa ao longo de todo deste processo. Começou por, inopinadamente, optar entre a proposta governamental aprovada e uma outra de uma comissão governamental, entretanto ultrapassada (nomeadamente pela remodelação governamental ocorrida no último Outono), e ao balancear-se entre diversas soluções e recados (que passaram por um lancinante apelo ao 'bloco central'), acaba por adotar numa posição de ‘vão-se os anéis mas fiquem os dedos’, isto é, deixar cair as algumas alterações para fixar arraiais na defesa das PPP.

No desempenho das suas atuais funções, o Presidente da Republica anunciou – por todo o lado – o seu ‘veto preventivo’ a uma nova Lei de Bases que incluísse o fim das PPP na saúde o que constituindo uma intolerável intromissão em poderes que lhe são estranhos e constitucionalmente vedados mostra que os alardes afetivos e a ‘self mania’ não conseguem esconder opções ideológicas. 
O PS acolheu a argumentação presidencial – um emérito porta-voz da Direita desgarrada e perdida - num terreno político onde (o PS) tem especiais responsabilidades históricas, afinidades programáticas e até afetividades pessoais e que costuma, repetidamente, invocar nas celebrações partidárias, eleitorais e comemorativas.

Não é possível ser ao mesmo tempo pai e padrasto. Quando há padrasto é certo e sabido que ou o pai morreu, ou separou-se ou desapareceu sem deixar rastro. Mas a existência de um novo padrasto é também reveladora da existência de novas afinidades, recentes afetividades, enfim, de novas opções de vida, que estarão na forja.

Todavia, para muitos socialistas – mesmo para os agnósticos e ateus - parecerá uma apostasia ‘invocar o nome de deus em vão’. E o deus-pai (entrar numa visão escatológica e religiosa), que os portugueses reconhecem neste terreno, deixou uma evangélica cartilha que está a ser rasgada. Ainda, por cima, na Páscoa. E todo este processo de revisão da Lei de Bases da Saúde é, portanto, muito ‘pascal’, isto é, ´passageiro’ (para fazer jus à origem etimológica do termo Páscoa) de tal maneira que o próximo passo (a Direita está pronta para dar) é questionar sobre a sua necessidade.

A sugestão será denominar as PPP, que parecem resistir à mudança esperada e desejada, de PPPP, isto é, PPP da Páscoa (ou seja na passada), ou PPP Provisórias (a fórmula 'facilitista' encontrada pelo grupo parlamentar do PS para deixar tudo na mesma)…

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