A Guarda, bem antes do 25 de Abril – Carlos Barroco Esperança

 A Guarda, bem antes do 25 de Abril – Carlos Barroco Esperança 1 (Pg. 231/234) - 9732 carateres.

Ignoro como era a Guarda no estertor da ditadura, mas conheci bem e vivi intensamente a minha cidade na década de 1953/63, nos anos em que aí estudei e nos dois seguintes em que, lecionando na Covilhã, regressava nos fins de semana.
Era uma cidade escura com algumas casas sem água e saneamento, mesmo em frente ao Hotel Turismo ou na freguesia de S. Vicente, apesar de tudo bem melhor do que o Cume onde frequentei o ensino primário tendo a mãe ali professora. Era enorme o contraste e há de ter-me parecido um luxo a eletricidade, o saneamento e a água canalizada além do telefone público nos Correios e, após encerramento, no Café Cristal, até às 24 horas, luxos ignorados na aldeia onde se chegava por caminhos de terra batida ou de comboio.
Na referida década a água congelava na jarra das salas de aula do liceu da Guarda, onde a verba anual se esgotava em poucos dias de aquecimento. A violência e a intolerância em relação às mulheres eram grandes. As meninas queixavam-se dos professores que lhes diziam que o seu lugar era em casa, a remendar meias e a fazer as lides da casa.
Não recordo qualquer atividade significativa na construção civil depois de inaugurados os palácios da Justiça e das Corporações e, mais tarde, da prisão construída na periferia da cidade, prisão que retirou os reclusos da velha, em frente à Escola do Magistério. 
A Guarda há de ter-se desenvolvido na década que faltava para o 25 de Abril graças aos emigrantes, ao mimetismo dos seus costumes e remessas de dinheiro, mas a cidade que recordo era um antro reacionário ainda que a memória me remeta para a camaradagem singular entre estudantes de um tempo irrepetível de afetos e de gosto pela transgressão.
Eram poucos os residentes autóctones e era flutuante a sua população. Mulheres idas das aldeias, muitas vezes analfabetas, deixavam aos maridos o amanho das terras e rumavam à cidade com os filhos próprios e os de vizinhos, para alugarem as casas onde os albergavam para crescerem e estudarem até se fazerem à vida ou seguirem com eles para Coimbra.
Os filhos alheios pagavam 100 escudos e quantidades determinadas em géneros, azeite, batatas e outros produtos na hospedagem ao farnel. O dinheiro era sabiamente gerido na renda da casa, água, eletricidade, petróleo, carvão e mercearias por essas cuidadoras que também chamavam a si todas as lides da casa. A abnegação dessas mulheres permitiu a muitos o elevador social que os fez sair da pobreza numa época em que era improvável a ascensão social nos estratos em que nasceram.
Permanecem anónimas essas mulheres que se sacrificaram para darem aos filhos novos horizontes num despojamento de que só os pobres são capazes. E dessa epopeia heroica não existem referências.
Nenhuma outra cidade teve como a Guarda tão elevada percentagem de estudantes entre a população. A hospedagem ao farnel e as casas particulares transformadas em pensões, para sobrevivência dos locadores, permitiram a sucessivas gerações a fuga aos campos que os pais tratavam antes de emigrarem em massa na década de sessenta.
O liceu, a escola técnica, o colégio masculino de S. José, o feminino de N.ª Senhora de Lourdes e o Centro de Assistência Social eram as instituições de ensino secundário. Vale a pena destacar esta última, que recolhia meninos altamente carenciados e os protegia. Era uma instituição católica dirigida por uma senhora, D. Dores, que lhe dedicou a vida.
A D. Dores foi a referência desses miúdos sem recursos, que estudavam até à idade dos empregos que ela própria lhes procurava. Muitos conseguiram, através de uma primeira colocação na Banca, nos Seguros ou noutras profissões, já emancipados, tirar cursos superiores e atingir altos cargos. Ficaram a devê-los à dedicação da Senhora D. Dores que encontrou a sua realização religiosa nessa benemérita tarefa.
Havia ainda a Escola do Magistério que formava docentes do ensino primário, com forte pendor reacionário, religioso e político, para perpetuação do regime através do ensino das quatro classes que esgotavam o ensino obrigatório da totalidade das crianças rurais.
O Seminário Maior era então o único estabelecimento de ensino superior no distrito. Regurgitava de seminaristas oriundos do seminário menor do Fundão para concluírem ali os estudos eclesiásticos ou deles desistirem inquietados pelas hormonas. Mas viviam alheados da população e apenas desfilavam em longos grupos, nos dois sentidos, entre a Sé e o seminário, dentro de batinas e enquadrados por padres tonsurados e com o colar romano a brilhar.
A cidade tinha três Cafés, Mondego, Monteneve e Pastelaria Cristal, esta com o restaurante para casamentos e batizados no primeiro andar e no rés do chão o café/ pastelaria e uma enorme sala de bilhares onde o sr. Raul estava atento para cobrar o preço do aluguer das mesas do popular desporto.
O Café Monteneve era frequentado, por oficiais do Regimento de Infantaria, professores do liceu, médicos, advogados, governador civil, presidente da Câmara, diretor da Escola do Magistério, comandantes da GNR, PSP, Legião Portuguesa, clérigos proeminentes e outras pessoas pouco recomendáveis. Essa legião de notáveis era designada na imprensa por forças vivas. Além deles só alguns médicos e advogados se viam ali em convivência ou em prudente e significativa separação.
O Café Mondego era o mais popular e o único que os estudantes frequentavam. Tinha o mais saboroso café e os clientes mais variados. Decorado com magníficos azulejos, acolhia no interior e, nos Verão, também na esplanada, os mais variados fregueses, incluindo as duas únicas senhoras que na cidade frequentavam um Café, a D. Dores do Centro de Assistência Social e a D. Dores Mantas que mutua e reciprocamente se tratavam por Senhora Dona Dores apesar da proximidade afetiva e religiosa que as unia.
A ausência de mulheres no espaço público era uma constante a lembrar o que ainda hoje se passa nos países onde o islamismo lhes extingue a existência.
Casas de Pasto, tabernas, um hotel, o Hotel Turismo, duas pensões decentes, que seriam promovidas nas décadas seguintes sucessivamente a Residenciais e Hotéis, e outras que hoje seriam designadas de espeluncas, compunham a insipiente indústria da restauração.
Havia uma excelente biblioteca municipal onde a vigilância do regime não impedia o acesso a livros que nenhum estabelecimento de ensino consentia. O responsável era o padre Pôpo, uma exceção no clero, que nunca recusava os livros pedidos. Constava que fora afastado do múnus por causa de uma filha cuja paternidade assumira num ato de inusitada coragem. 
A Guarda era então uma cidade ferozmente conservadora e de forte influência clerical. Às meninas era vedado o uso de calças compridas, apesar das temperaturas fortemente negativas registadas no Inverno, e era-lhes imposto o uso de meias durante o Verão. Era mal visto o acompanhamento com rapazes e impedida a mais leve manifestação de afeto no espaço público. Eram repressivos os professores, os padres e as famílias.
Havia dois semanários locais: a Guarda, órgão da diocese, e outro da União Nacional, o partido único da ditadura.
As aulas de Canto Coral e de Religião e Moral eram um exclusivo do clero católico, o único clero permitido da religião que era esteio do regime.
Salazar era ali o salvador da Pátria que só não convencia os médicos Garcia e António Júlio, o advogado João Gomes, o Sr. Armando, fotógrafo, o Tenente Pedro Joaquim e alguns outros cidadãos que desapareciam em silêncio do espaço público a caminho de um presídio qualquer da ditadura, enquanto o amor ao regime era cultivado pela União Nacional, Legião e Mocidade Portuguesa em uníssonos louvores à ditadura que nos salvava da balbúrdia dos partidos e das greves graças a Salazar, enviado da Providência.
É difícil imaginar o que era então a a Guarda, que só encontra hoje paralelo nas cidades onde o Islão retirou as mulheres do espaço público.
Na Páscoa, graças ao piedoso ativismo de alguns professores, os estudantes ainda eram convocados pelo padre Isidro para a desobriga coletiva que tinha lugar na Sé, tal como a eucaristia. E, após a confissão, havia a ficha para preencher com os nomes e as moradas, talvez, numa visão benigna, para mera estatística da paróquia.
Quando em 22 de abril de 1961, quatro generais franceses fizeram o golpe de Estado na Argélia, sublevando os militares aí estacionados para impedirem a autodeterminação da colónia, a cidade da Guarda, obedeceu ao bem orquestrado impulso espontâneo e saiu à rua com o entusiasmo de quem estava determinado a morrer pela Pátria.
Nessa altura, ainda se ouvia nas escolas primárias o som da cantilena que, desde 1954, precedia a saída das aulas:
á.… á.… á... – Heróis de Dadrá; é.…é.…é… – Lutai pela fé; i.… i.… i…  – Nagar Aveli; ó.… ó.…ó… – Goa não está só; u.… u.… u... – Abaixo o Nerú.
As cordas do nacionalismo vibravam e dos noticiários da Emissora Nacional saía ainda a voz do locutor que soturnamente declamava:
«Os sinos da velha Goa e as bombardas de Diu serão sempre portugueses, (e ouvia-se o som de disparos de canhão») seguidos da canção “Goa é nossa, Goa é nossa e Damão de o ser se preza...”.  
Antes das notícias censuradas passou a ouvir-se ao almoço a voz de Ferreira da Costa: “Aqui Luanda...”, entendido como “aquilo anda...”, “Rádio Moscovo não fala verdade”, terminando os noticiários com os nomes dos “mortos ao serviço da Pátria”. 
A angústia só viria mais tarde, com o número de mortos a aumentar, para ser vivida em silêncio enquanto eram difundidas apenas as notícias consentidas pela ordem, a moral e os bons costumes.
Quando, em Nambuangongo, morreu abatido pelo Inimigo o primeiro alferes do quadro, Casimiro Teixeira, que estudara na Guarda até ao 7-º ano, houve grande comoção entre alunos do liceu, mas a cidade continuou adormecida enquanto eram desconhecidos os mortos da guerra até que faleceram o Castelo, jovem capitão piloto-aviador, e o Pinto, furriel miliciano, filho do sr. Pinto que vendia livros em segunda mão junto ao cinema e era conhecido de toda a cidade.
Na década seguinte à que ora evoco há de ter continuado congelada a água da jarra nas salas de aula do liceu durante os longos Invernos porque só havia verba para uma ou duas semanas anuais de aquecimento. 
E continuaram certamente a violência e a intolerância, e as queixas das meninas a quem professores misóginos diziam que o lugar delas era em casa, a remendar meias; e o frio que todos suportávamos com as meninas proibidas do uso de calças compridas.
Quem passa hoje pela Guarda não reconhece a cidade que cresceu até ao Outeiro de S. Miguel e à volta da velha urbe, com horror à mudança e ambiente concentracionário que o 25 de Abril havia de resgatar e aproximar dos ambientes mais tolerantes da beira-mar.
Já não há vestígios de gente a implorar bênçãos e a lambuzar com ósculos as mãos dos padres, de polícias a cambalear com forte odor a aguardente ou das repartições públicas com escarradores.
A Guarda é hoje a memória que sobrevive e conserva intacta a atmosfera que percorreu a juventude dos últimos estudantes ainda vivos, memória dorida de uma adolescência difícil que carrega ainda os afetos desse tempo nos sonhos e na saudade.


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