Consulta médica – Crónica (7.595 carateres)

O Catur era, em finais da década de sessenta, uma localidade surrealista do norte de Moçambique. Era muito mais um sítio onde puseram pessoas do que uma povoação onde vivia gente. Ficava no fim da linha do caminho de ferro que deveria ligar Nacala a Vila Cabral, e que há muitos anos desistira de chegar ao destino. Tinha sete edifícios, um dos quais, junto à linha, onde se lia "Estação do Catur", duas pequenas construções pomposamente designadas de armazéns e uma outra, grande e feia, que servia de habitação e comércio – a cantina do Porto – batizada com o nome do proprietário.

As três casas restantes estendiam-se à beira do caminho, a seguir à cerca de arame farpado onde a tropa erguera uma série de barracões de zinco, material moderadamente adequado às amplitudes térmicas e à segurança dos inquilinos, onde estava sediado o Batalhão de Caçadores 1936, assim chamado sem que alguém se dedicasse à caça, ao contrário do que o nome faria supor. Na verdade, todos ansiavam por não ser caçados. E do Batalhão, além do Comando, só existia ali a C.C.S. (Companhia de Comando e Serviços), formalmente comandada por um oficial dos Serviços Gerais que fora soldado do contingente português que apoiou Franco na guerra civil espanhola e fizera carreira na GNR. Era considerado o tenente mais analfabeto do exército português antes da promoção que fabricara o capitão mais ignorante do mundo.

Ao lado havia um terreno plano, denominado pista de aterragem, onde os pilotos acertavam com as aeronaves e, de novo, conseguiam levantar voo. A uns metros ficava a tal Cantina, local onde o Porto explorava a miséria indígena, fornecia alguns produtos essenciais para as necessidades básicas e recolhia o dinheiro que da tropa passava pelas mãos das populações locais, bem como a maquia do milho que aí moía e outros raros produtos tirados à subsistência para trocar por sal, peixe seco ou panos.

A cerca de um quilómetro ficava a aldeia, com centenas de pessoas, quase todas mulheres e crianças, “protegida” por sipaios, assim designados, segundo creio, por semelhança com os soldados indígenas da Índia recrutados para serviço dos ingleses, geralmente de etnia diferente da da população local, algumas vezes portadores de rivalidades ancestrais; cabia-lhes a sua defesa contra-ataques vindos do exterior, piedosa explicação oficial para impedir contactos com os maridos e irmãos foragidos no mato.

Fi junto desta aldeia, já próximo das palhotas, que o Dias, furriel-sapador, viajou no guarda-lamas da viatura em movimento, onde se instalara contra a vontade do condutor, após o almoço, antes de se deixar cair à frente da roda que o esmagou, ao serviço da Pátria. Bem perto, aliás, do sítio onde o Martins, capataz do caminho de ferro, civil e branco, havia de perder a cabeça e parte do tronco, desfeito por uma bazuca que o esperava e que, à queima roupa, o atingiu em cheio quando inspecionava a ferrovia numa zorra de tração manual que se imobilizara no términos à espera de inverter a marcha.

Duas vezes por semana o comboio chegava ao Catur, fortemente escoltado, com munições, mulheres, armamento, vitualhas, soldados e material diverso. Na carruagem restaurante matava-se a fome dos dias de intervalo com um bife com molho que o pão enxugava, dois ovos estrelados, muitas batatas fritas e uma cerveja de litro. Quem podia pagar, naturalmente.

Mas era dentro do perímetro de arame farpado que morava a soberania. Era ali que flamejava durante o dia a bandeira verde-rubro e, durante a noite, aguardavam metralhadoras, com bala na câmara, a oportunidade de defender Portugal. Era nesse espaço que acontecia tudo o que era importante. Por lá passou Reis Rodrigues, com a patente de bispo e a dignidade de brigadeiro, ou vice-versa, a queixar-se de oito refeições consecutivas de lagosta, suplício a que o comandante dos católicos fardados teve de submeter-se para poder advertir todos, crentes ou não, da razão da presença em tão insólito local – “defesa da civilização cristã e ocidental” – quando pensávamos, ingenuamente, estar a cumprir uma comissão de serviço militar obrigatório, com geral contrariedade. Foi ali que o general António Augusto dos Santos, que alguns anos mais tarde se proporia processar Melo Antunes, Álvaro Cunhal, Mário Soares, Almeida Santos e Vítor Alves, entre outros, por alta traição à Pátria, começou um discurso por “Camaradas, vós estandes aqui e as vossas famílias estais lá”, mostrando igual afoiteza a combater o inimigo e a gramática, para acabar por agradecer a erradicação do “terrorismo” na zona, afirmação que no dia seguinte a FRELIMO se encarregaria de atenuar com um ataque a uma coluna militar de onde o comandante-chefe de Moçambique esteve ausente.

Foi ali, também, que o Ten. Coronel Luís Vilela, comandante do Batalhão, recebeu o Eng.º Jorge Jardim, prócere do fascismo, antigo membro de um Governo de Salazar, ao tempo cônsul do Malawi, vindo da cidade da Beira no seu avião particular, para resolver o problema de um 1.º cabo da Companhia 1626 que, por distração, ficara naquele país onde a dita Companhia fora perseguir uns soldados da FRELIMO que lá se refugiaram e acabou a saquear uma povoação onde o militar se perdeu dos companheiros. Deveu-se à intervenção do cônsul e ao seu comprovado ascendente sobre o presidente Hasting Banda, que uns designavam de amigo de Portugal e outros de fantoche, a devolução do referido cabo, intacto, com morteiro e granadas, entregue pelas autoridades do país vizinho na povoação fronteiriça de Mandimba, dois ou três dias após.

Era ali que acabavam por passar altas personalidades ao serviço da Pátria, enquanto esta se endividava de favores para com elas.

Era também no interior da cerca de arame farpado que o furriel-enfermeiro exercia clínica durante as ausências frequentes do médico. Cabia-lhe avaliar a gravidade das queixas, fazer diagnósticos, receitar os medicamentos adequados, em suma, tratar as moléstias dos doentes, militares e civis.

Numa manhã, igual a tantas outras, com a habitual fila de pacientes, com o sol já a incidir no zinco do barracão, que irradiava calor escaldante para dentro da enfermaria, lá começaram as consultas.

Vários leprosos para cuja enfermidade não havia qualquer medicamento disponível, que também se não queixavam da falta de nariz ou de dedos já corroídos pela doença, mas de males menores com que se arrastavam até que a septicemia abreviasse a enfermidade, tinham sido já consultados. A penicilina fora injetada aos portadores evidentes de doenças venéreas, estreptomicina aos suspeitos de tuberculose e cloranfenicol, hoje quase proscrito, ingerido em cápsulas pelas vítimas de inúmeras diarreias que se encarregavam de dizimar, por igual, gente das várias etnias. Uma parte considerável apresentava altíssimas temperaturas e tremores. O diagnóstico, nunca desmentido e de improvável recurso, era paludismo e a cloroquina o remédio que raramente se enganava.

Vinham negros com as mais variadas doenças a que a ciência do enfermeiro e as disponibilidades terapêuticas respondiam com vinte a trinta produtos de que os mais populares eram drageias de vitaminas com sais minerais, muito apreciadas pelas suas cores vivas, e a Vitamina C efervescente que fazia o prestígio do enfermeiro pelas bolhas que o comprimido libertava quando mergulhado em água e a delícia dos pacientes pelo elevado teor de açúcar. Algumas vezes o produto prescrito terá estado de acordo com as necessidades terapêuticas e outras tantas terá a doença acertado com o medicamento que lhe coube.

Ainda a ciência não se tinha esgotado, nem os medicamentos, nem a fila, reforçada frequentemente por doentes já medicados, mas que não perdiam a oportunidade de reincidir, e mais uma mulher, igual a tantas outras, com queixas semelhantes, vinha em busca do almejado alívio. Referia dores de cabeça e dores nas costas – dizia o intérprete, elemento imprescindível a qualquer consulta. O furriel-enfermeiro receitou um analgésico oral enquanto o maqueiro trazia um copo de água e o cabo-enfermeiro lhe entregava dois comprimidos que ela logo deglutiu.

A mulher recomeçou a falar. Dizia – a fazer fé no intérprete –, que também doía a barriga. Engoliu mais um comprimido, desta vez um antiespasmódico. Também doía o peito – o que lhe valeu a prescrição de uma massagem com um unguento prontamente aplicado pelo cabo. E ainda se queixou de diarreia pelo que teve direito a ingerir outros comprimidos para o efeito e recolher mais uns tantos para levar, o que aceitou. Foi-lhe explicada a posologia e a duração do tratamento e perguntado se tinha percebido. A tudo respondeu afirmativamente e manifestou o seu contentamento.

Outro doente – sentenciou o enfermeiro. A mulher, no entanto, não se moveu do primeiro lugar que ocupava na fila e voltou a falar. O enfermeiro perguntou se lhe doía mais alguma coisa ao que o intérprete respondeu que não, não senhor, a mulher não estava doente.  Doente estava o filho, encarrapitado nas costas, atado na capulana, alheado da cuidada consulta e eficiente tratamento em que a mãe o precedera.

In Pedras Soltas – Ed. esgotada (ortografia atualizada)


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