Religiosidade e Fado Castiço
Texto de Onofre Varela
Começo esta crónica com uma declaração pública: sou Ateu e “adoro” Cântico Gregoriano e Arte Sacra.
A Arte Sacra encantou-me quando na juventude dos 30 anos visitei o Museu de Arqueologia e Arte Sacra (não sei se acertei no nome) agregado à Igreja Catedral da Sé do Porto. Aquela colecção de crucifixos mostrou-se-me de uma beleza ímpar!
O Canto Gregoriano aconteceu-me ocasionalmente, numa visita que fiz à Catedral de Santiago de Compostela (Galiza) há tantos anos cuja contabilidade esqueci.
Aquelas vozes, aquele som, aquela imagem dos frades de hábito castanho medieval, meio na penumbra e com os rostos ocultados pelos capuzes, invadiram-me a alma e lá moram até hoje. O grupo que eu integrava rapidamente abandonou o local. Eu fiquei até ao fim e custou-me sair daquele lugar encantado mesmo depois de terminado o cântico, para saborear o silêncio que se lhe seguiu e que ainda fazia parte dele.
O sentimento da religiosidade é o produto maior de um cérebro inteligente e sensível, que só o Homo sapiens detém… o que não quer dizer que todos nós o tenhamos na mesma dimensão, o usemos do melhor modo e o sublimemos como deve ser sublimado.
A conspurcar tão elevado sentimento espiritual está a exploração estratégica (e vigarista… quando se sabe estar-se a vender gato por lebre) das mentes religiosas, por parte de quem tem nos cultos e no comércio das religiões, um maná que lhe dá bom viver e poder social desmedido.
Isto pode querer dizer que o Homo, afinal, é, provavelmente, muito menos sapiens do que, suposta e desejavelmente, deveria ser enquanto gente de bem.
O caminho que fazemos na religiosidade, termina num imenso portal que abrimos… ou não!
Quem ficar do lado de dentro, na penumbra da fé, no cheiro do incenso e do mofo, e no silêncio do sagrado intocável… morrerá crente, patinando toda a vida no lodo do lago da crença, sem ter interrogado o culto nem duvidado da religião que abraçou como coisa vera, única e suprema.
Quem tiver a coragem (ou a sorte) de abrir o portal, vai encontrar-se no Jardim das Interrogações… onde, inevitavelmente, vai interrogar o conceito do deus que o fez religioso e transportou até ali. Interrogação obrigatória… sem ela não se passa do animal Homo… e não se chega à qualidade de sapiens!…
É demasiado frequente tal questionamento rejuvenescer a mente que pode continuar a navegar no lago da crença, mas já sem lodo e transformado em oceano… ou conduzir à descrença salutar e sapiencial… quiçá, até, ao Ateísmo!… Sem abandonar o sentido da religiosidade consciente, o que é de suma importância num Homo sapiens sapiens quando o é por inteiro… e com a repetição do adjectivo.
A religiosidade tem várias faces. Há uma outra que se encontra fora das igrejas, é laica, e eu encontro-a no Fado Castiço, o qual pede para ser ouvido… “religiosamente”.
O Fado é uma capa da alma que se sente e usa nas “catedrais” que são as Casas de Fado.
Não sou frequentador habitual de lugares de tal recato, tão intimistas e encantadores… mas sinto que algum fado me inunda de tal modo o espírito, que não posso deixar de o viver como cântico profundamente religioso, tal como é o Gregoriano.
Recentemente aconteceu encontrar-me com a obra de uma fadista falecida em Dezembro último… pela qual fiquei definitiva e irremediavelmente apaixonado!… Trata-se de Maria João Quadros; a última fadista castiça, como alguém disse.
Nascida em Nampula (Moçambique) em Fevereiro de 1948, era irmã de uma colega que tive numa agência de publicidade onde trabalhei em Lisboa nos anos de 1975 a 1978. A família mudou-se para Lourenço Marques quando ela tinha 16 anos e se estreou a cantar aos microfones da Rádio Moçambique. A poetisa Fernanda de Castro era sua tia, e a escritora Rita Ferro, sua prima.
Viajou para Luanda com a intenção de se empregar na TAP como hospedeira de bordo, mas o destino trocou-lhe as voltas da vida e acabou por abrir uma Casa de Fado na capital angolana.
Regressada à Metrópole (como então se designava Portugal em relação às colónias) após a Revolução dos Cravos, cantava na sua Casa da Mariquinhas, em Alcântara. Conheceu o poeta Tiago Torres da Silva que lhe escreveu as letras de muitos dos seus fados, entre os quais está um que me arrasa: “Meu Amor Abre a Janela”.
É possível encontrá-lo no Google e ouvi-lo até à exaustão… como eu faço… porque a paixão que encontrei pela fadista a isso me obriga.
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