O peregrino D. Aníbal e a laicidade traída

No próximo dia 26, parte para Roma um luzidio séquito chefiado por Sua Sereníssima Majestade D. Aníbal I, acolitado pelo presidente das cortes, D. Jaime Gama, o ministro dos Negócios Exteriores da Propagação da Fé, D. Luís Amado, o Condestável D. Valença Pinto, o cardeal do reino D. José Policarpo, o Superior da CEP e portador do hissope, D. Jorge Ortiga, o Superior da Ordem do Carmo em Portugal, padre Agostinho Marques de Castro, e o estribeiro-mor, Sr. Duarte Pio, especialista em solípedes que se ajoelham – autor, aliás, de um opúsculo de referência sobre a devoção dos cavalos de D. Nuno –, de quem se reclama familiar. De D. Nuno, claro.

O cortejo é composto por devotos que exaltam D. Nuno e exultaram quando ele, na paz da longa defunção, acudiu ao olho esquerdo de D. Guilhermina, atingido por salpicos ferventes de óleo de fritar peixe. Era o prodígio que faltava para a canonização de quem foi mais destro a matar castelhanos do que a pôr pensos. Após o milagre, por prudência e pela idade, D. Guilhermina trocou os fritos pelos cozidos.

A embaixada é inferior à que D. João V enviou a Clemente XI mas D. Aníbal I não é esbanjador nem procura de Bento XVI o título de «Senhor Fidelíssimo», ainda que o mereça no que se refere à fé e à constância matrimonial.

O reino anda aturdido com a honra da canonização do taumaturgo com provas dadas na especialidade de oftalmologia. É pena continuar morto, mas sendo uma ofensa para a razão é um orgulho para a fé que continue a pelejar, agora no ramo dos milagres.

Falta D. Guilhermina na peregrinação, para contar aos fidalgos como, perante a dor da queimadura, não se lembrou de Gil Vicente com palavras que, não sendo adequadas à salvação da alma, aliviam a dor, e se lembrou de evocar o bem-aventurado Condestável que o clero autóctone ansiava canonizar desde os tempos da Cruzada Nun’ Álvares.

Os ilustres peregrinos não vão a Roma bajular o Papa, vão agradecer a deus a cura do olho esquerdo da D. Guilhermina de Jesus.

Quando a luzidia embaixada regressar à Pátria, com os joelhos doridos das genuflexões, a pituitária irritada do incenso e os corpos enegrecidos pelo fumo das velas, espera-se que o país rasteje de júbilo por mais uma farsa pífia e tantas genuflexões pias.

Ponte Europa/SORUMBÁTICO

Comentários

Anónimo disse…
maravilha!

longa viva a dona Guilhermina, + seu olhinho "frito", creio!

Acredito, desejo, acho razoável que D. Anibal possa ficar de vez lá na Santa Sé

visando uma cooperação estratégica com o santo reino de Deus

e nos deixe aqui mais descansados

com o estatuto dos Açores, de facto com alguns absurdos desnecessários

abraço
Julio disse…
Adorei o sarcasmo! Merece prémio. E acredito que a senhora atingida em um dos seus dois olhos da cara com gota de azeite fervente não teria sido a única naquele reino sagrado de condestáveis e soberanos, pois, quem sabe, ali perto, no outro lado da rua, grito horrível se ouviu de outra mulher indefesa atingida com outro pingo d’azeite na vista esquerda, mas o condestável pensou que era o marido dela apanhando-a com um soldado do rei!
Isto é, existiam naquele reino católico muitos infelizes atingidos nos olhos com espadadas de condestáveis e outros, mendigando pelas vielas cheias de excremento humano, a quem o dito milagreiro desprezava e de quem o seu deus sentia intensa repugnância!
Vamos que merecemos um país com menos condestáveis!...
ana disse…
Ah, ah! Hoje comecei bem o dia. Parabéns, óptimo texto.
andrepereira disse…
O texto é óptimo, mas a realidade é triste. Demasiado triste que a nossa República se deixe vergar assim a esta charlatanice. Volta Sampaio que impuseste a tua legítima esposa ao Chefe do Vaticano! Volta dignidade!
andrepereira disse…
Seria bom ouvir o Colégio de Especialidade de Oftalmologia! Com a falta que há destes especialistas em Portugal, graças à acção política do Primeiro-Ministro Cavaco Silva nos anos 80 e 90, só nos faltava agora termos que andar com umas mezinhas para curar os olhos....
Mano 69 disse…
Isto de ter olhos atreitos à remela é muito triste.
Lídia Garcia disse…
Sarcástica e tão saborosa esta crónica de tão representativa embaixada de vassalagem de tão fidelíssimo e submetido reino.
Estou com o Aires, na mesma convicção e no mesmo desejo, no que a D. Aníbal e a seu séquito diz respeito...
Bem podiam ficar por lá!
(E, já agora, podiam pagar os transportes e as prendas das suas contas pessoais...)

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