O Menino Eleutério (Conto) – 6480 carateres
Atanásio Barroso e Maria de Jesus já tinham passado os trinta anos de idade e, em conjunto, os trinta hectares de terra de semeadura e outros tantos de olival, vinhedo e pinhais, quando os amigos os empurraram para o matrimónio.
Nunca antes outra se interessara por ele nem ela a outro desejara, que se soubesse, pois a mulher séria era vedado manifestar desejos de qualquer natureza. Daí que toda a aldeia os visse virtuosos e talhados um para o outro. E assim foi.
Casados e abendiçoados por um padre que a idade tornara casto e suspeito de santidade, dois anos se passaram de esforços inglórios e impertinentes perguntas dos vizinhos, sem que D. Maria de Jesus lograsse emprenhar.
Já julgava ela ser maninha, por ficar sempre forra, responsabilidade que tinha obrigação de assumir ainda que, e não era o caso, faltasse o marido ao cumprimento das obrigações matrimoniais. Moléstias de varão é que não são de admitir.
Bem sabia D. Maria de Jesus que ao marido cabiam apenas os êxitos, não devendo mulher séria pôr-lhe em dúvida os méritos ou queixar-se do desempenho como se tivesse direito, à guisa de mulher mundana, ter de outros desempenhos conhecimento que lhe permitisse comparação.
Começou a evitar o banho e a seguir melhor os conselhos de amigas que sorriam sem dentes por entre numerosa prole. Debalde. Fez então uma promessa à Senhora de Fátima. Com a reza diária do terço, em caso de sucesso, faria a pé as trinta léguas que a separavam da Cova da Iria. Assim a Virgem a ouvisse.
Eram votos formulados em português, idioma que a Virgem mostrara dominar em confidências à Irmã Lúcia numas deslocações que fizera a uma azinheira da Cova da Iria, nas quais lhe deu conta de um atentado que um papa por nascer havia de sofrer, bem como de outras coisas excecionais com que facilmente convenceu três crianças das virtudes terapêuticas do terço e da penitência.
Quem cedo adivinhou o mal que a Rússia espalharia pelo mundo, quem, suspendendo os hábitos dos astros na Cova da Iria, fez girar o Sol sobre si mesmo e o fez descer três vezes até à altura do horizonte, maravilhando 50.000 crentes, fácil lhe seria estimular a fertilidade de uma devota.
Quem teve o poder de mostrar o Inferno e os seus horrores, destinados aos que se arredam das orações ou se baldam à penitência, não abandonaria quem cumpria as obrigações matrimoniais sem ter em vista outro fim que não fosse o da prossecução da espécie, sem laivos de lubricidade, sem sombra de pecado.
Ainda não tinha passado um mês sobre o piedoso voto e já, dia após dia, a ausência das regras prenunciava o êxito da fé. Esperou tempo suficiente antes de avisar o marido, não fosse a natureza pregar-lhe uma partida.
Depois foi esperar o que é hábito, chamar a entendida na altura própria para cortar o cordão umbilical, observar a criança e pronunciar o veredicto sobre o sexo.
Naquele Natal de 1940 aqueles pais nem se davam conta da guerra que grassava na Europa. Ouviam vagamente falar de Hitler com a admiração e respeito que merecem os Homens que amam a Pátria e se dispõem a combater judeus, ciganos, maçons e comunistas. E, graças a Deus, o Eleutério estava livre de tudo isso pelo nascimento e pelo batismo que o Senhor Padre havia de celebrar no trigésimo dia do nascimento, com pompa, circunstância, muitos convidados e enorme quantidade de vitualhas.
O nome do santo fora-lhe dado pelo padrinho que ignorava haver três homónimos, sendo um bispo, outro Papa e um terceiro, não menos virtuoso, companheiro de S. Dinis, com quem partilhara o martírio.
Eleutério ficou aos cuidados da irmã da mãe, mais velha que ela dois anos, mulher austera e substancial, celibatária convicta, habituada às lides do campo, à prática religiosa e ao ensino da catequese.
A tia sabia da promessa. Isso bastou para cuidar do sobrinho enquanto a irmã e o cunhado se aventuravam nos caminhos de Fátima com bandos de peregrinos que engrossavam a cada momento. Suportaram a dureza da caminhada, resistiram sem um queixume, sem vacilação na fé, sem folga nas rezas.
Viveram intensamente a chegada à Cova da Iria e comoveram-se na procissão do Adeus. No dia seguinte, após as cerimónias a que presidiu um cardeal, partiram de regresso, agora de camioneta, cheios de cansaço e santidade.
Nesses dias Eleutério esquecera completamente a teta materna pela qual, em boa verdade, nunca mostrara a avidez dos filhos dos pobres. Ficou vedado.
Eleutério era nome rebarbativo que os pais acharam adequado à sua condição, e o padrinho ao seu futuro, mas tão pouco eufónico e propenso a diminutivo que cedo passou a ser tratado por Barrosinho.
Cresceu a ouvir rezar pelo fim da guerra e, acabada esta, com dúvidas sobre quem seriam os melhores, continuou a ouvir rezar pela conversão da Rússia, pela paz, pelo Santo Padre, pelos governantes e por intenções avulsas que variavam em cada missa, de acordo com as necessidades mais prementes. Frequentou a catequese com a tia, mudou os dentes e sobreviveu ao sarampo, às bexigas, ao crisma e ao exame do 2.º grau.
No ano seguinte, feito o exame de admissão à primeira tentativa, entrou no liceu, onde, ao fim de 10 anos, completou o 7.º ano a tempo de ir para Mafra frequentar o curso de Oficiais Milicianos e vestir uma farda ainda mais bonita que a da Mocidade Portuguesa.
Em 1966, depois de ter defendido a Pátria e a civilização cristã e ocidental, em Angola, passou à disponibilidade com a patente de tenente.
A mãe, senhora muito virtuosa, falecia alguns meses depois do regresso do filho. Diabetes – dizia o médico – estiveram na origem de muito sofrimento e da morte prematura. Logo a seguir finava-se o pai, de desamor pela vida e cirrose hepática.
Barrosinho ficou só no mundo. Por incapacidade dos pais, falta de promessas ou desacerto com as fases da Lua, vá-se lá saber, não tivera irmãos.
Deixou a tia, catequista e intratável, as propriedades e a aldeia. Rumou a Lisboa.
Respondeu a anúncios e, em breve, encontrou emprego numa empresa de produtos químicos onde passou a ser tratado por Senhor Barroso. E casou.
Quando veio o 25 de Abril tinha sete anos de trabalho, sempre na mesma empresa. Chegara a chefe de secção, insensível às calúnias dos colegas invejosos que atribuíam o seu sucesso aos queijos de ovelha e garrafões de azeite que recebia do caseiro e com que obsequiava regularmente o gerente suíço por mera cortesia e amizade.
Quiseram saneá-lo os outros trabalhadores. O Senhor Barroso insinuou que lutara pela democracia na clandestinidade, até era simpatizante do Partido Socialista. Foi mais feliz que o gerente, regressado à Pátria na sequência de uma greve tumultuosa.
Hoje, 30 anos depois, é chefe de serviços. Não se sabe o que faz.
O atual gerente diz que ele é importante. Envelhece e envilece. Passa o tempo a dizer que pouco falta para os comunistas estarem todos no governo, que os militares traíram a Pátria, que a Pátria é uma porcaria, se fosse mais novo emigrava.
Recebeu subsídios para arrancar árvores nas propriedades da sua aldeia e, com novos subsídios, as plantar de novo. E não se cansa de dizer que os governos venderam Portugal à Europa do mesmo modo que entregaram o Ultramar ao comunismo.
Temente a Deus, quatro filhos perfeitos, todos com emprego do Estado e ordenado certo ao fim do mês, o Senhor Barroso começou a humanizar-se. Aos 60 anos, em véspera de Natal, só teme ter cada vez menos a companhia dos netos e cada vez mais a da amantíssima esposa que suporta, resignado, há mais de três décadas.
Mas começa a ser um homem feliz e agradavelmente maldizente.
Uma destas noites sonhou que era Natal e ocupava um lugar no Presépio. Viu-se a rodear o Menino com S. José, a Virgem, a vaquinha, as ovelhas e os reis magos. Acordou feliz. Nem se deu conta do animal que lhe coube ser. Milagre da fé.
(in Pedras Soltas, Memórias Perdidas ... e Achadas, ed.
2006)
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