O Hissope – Conto (10.000 carateres)
Corria tranquila a vida no convento, cumprido o tempo com orações e refeições frugais a horas certas. Da missa diária encarregava-se o Padre Agostinho, confessor e diretor espiritual, com descrições do Inferno, pormenorizadas e convincentes, e de horrores ainda maiores do Mundo, criado por Deus e abandonado nas mãos dos homens. Falava de um ror de pecados inenarráveis que faziam zangar muito Nosso Senhor, cabendo às monjas recuperar-lhe o humor pela oração e sofrimento.
Nas longas horas de meditação, nas rezas coletivas ou
individuais, davam graças por não partilharem esse espaço que o Diretor
Espiritual e a Madre Superiora eram únicos a transpor, protegidos pelas orações
aflitas com que o convento inteiro os acompanhava.
Nessas horas de vigília mística transferiam a intenção
habitual para a proteção dedicada e rezavam com a mesma acendrada devoção com
que pediam pelas intenções do Santo Padre, sem se interrogarem quais eram essas
intenções, pelo cumprimento da vontade divina, se é que depois de tantos anos
de Mundo ainda há vontade que resista, mas isto são pensamentos ímpios,
reflexões de quem julga inútil a vida monástica e considera a oração mera
ociosidade, sem lhe atribuir a eficácia e bondade sublinhadas por milagres que
crentes de todas as religiões confirmam.
Agostinho, tal como o santo de quem tomara o nome, possuía a
mesma vontade e determinação de ser casto, esperando também que a idade lhe
apaziguasse os desejos. Nutria igual desprezo pelas mulheres que lhe
incendiavam os sentidos, tinha a mesma certeza de que eram uma encarnação do
diabo, cujo cabelo e voz eram obscenos, inteligente reparo do santo,
verdadeiras fontes de pecado que só a oração e o sofrimento podiam evitar.
Talvez por isso era tão apreciado pelo prefeito da Congregação para os
Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, de quem tinha o
privilégio de receber bênçãos especiais por altura das festividades canónicas.
Às vezes, enquanto administrava a sagrada partícula,
adivinhava os corpos que os hábitos escondiam, os desejos que as orações
atenuavam, e atormentavam-no pensamentos pecaminosos de que os jejuns e a
oração o libertavam. Mas era durante a confissão, onde, por dever do múnus,
perscrutava até ao mais íntimo da alma, que a efervescência o apoquentava,
sabendo bem que a culpa cabia às filhas de Eva que ali se genufletiam
carregando o desejo que os seus conselhos e as regras monásticas reprimiam para
maior glória divina.
O Padre Agostinho já durante as confissões da Irmã Maria
Imaculada tinha indagado dos pecados cometidos, ao menos por pensamentos e,
perante o total desinteresse da penitente pelos ditos pecados, a tinha
advertido para estar vigilante, que Satanás manifestava particular predileção
pelos pensamentos, janela de oportunidade para tresmalhar a alma de uma devota,
mesmo, ou sobretudo, sendo freira e estando particularmente devotada à
castidade. De resto, o convento não era refúgio seguro das arremetidas do demo,
antes pelo contrário. Ele próprio era testemunha, com o sangue a ferver-lhe
perante o louvável desinteresse de Imaculada pela luxúria. E tudo isto apesar
de o convento albergar uma relíquia tão rara e cobiçada pelos outros mosteiros
– uma pena do Arcanjo Gabriel, muito bem conservada num relicário de ouro
cinzelado e com pedras incrustadas, proteção infalível à honra do convento.
A Irmã Maria Imaculada do Sagrado Coração de Jesus
Santíssimo, ou Irmã Maria Imaculada, ou Imaculada, simplesmente, deixados cair
os apelidos e reduzida a um só nome dos que no ato de professar serviram para
sepultar os profanos, rezava abundantemente. Sob os olhos indiferentes de um
Cristo cansado das orações e da cruz dependurada num prego periclitante
entalado na ranhura dos blocos de granito, rezava diariamente o terço, absorta
e genufletida, sem pressa de concluir o rosário que a Virgem recomendara à Irmã
Lúcia, em Fátima, para conversão da Rússia e salvação do mundo.
Uma tarde, igual a tantas outras, Imaculada, enquanto
rezava, através dum ligeiro vaivém da porta sem trinco, apercebeu-se da sombra
que penetrara a cela, de uns braços potentes que a agarraram por trás, da mão
que lhe esmagou os lábios, dum corpo que se colava ao seu enquanto outra lhe
percorria o hábito e lhe devassava a orografia do corpo esquecido.
Debateu-se em silêncio, esquecida a voz de que já se
desabituara, incharam-lhe os olhos, acudiu-lhe o sangue à face, quando
descobriu na estranha criatura que a enlaçava a figura do padre confessor que,
num ápice, lhe despia apressadamente o hábito a caminho da satisfação das necessidades
próprias sem cuidar das alheias. Despojada do hábito e reduzida ao mínimo
vestuário, precária resistência à lascívia reprimida, em estado de estupor,
suportou a arremetida. Apercebeu-se do corpo a ser derrubado sobre o leito,
sentiu a arremetida ignóbil, a violência gratuita, a sanha animal, como quem
aceita a penitência, como quem se resigna ao isolamento, ao silêncio e à
oração, com o mesmo desprendimento da vida sem sentido, que é fardo virado
desejo, que é morte de que se faz a vida monástica, que é renúncia a pretexto
da salvação.
Debateu-se primeiro, sim, mas quedou-se depois,
desinteressada, com uma dor intensa a penetrá-la, ferro em brasa a
percorrer-lhe as entranhas, imobilizada por uma força imensa – como se pudesse
fugir, primeiro, ou o quisesse tentar, depois. O ódio que a clausura sublimara
foi o sentimento primeiro, logo seguido da indiferença que os movimentos
alheios poderiam ter conquistado para a cumplicidade.
Não teve tempo. Pela primeira vez o olhar se detivera no teto
da cela para voltar à enxerga onde jaziam fluidos cujo sangue não podia provir
das chagas do Cristo metálico e indiferente, imobilizado na cruz da parede.
Na violação da freira pôs o padre a mesma violência perversa
do proselitismo. Desta feita não foi a fé que procurou impor, apenas buscou
aliviar o cio.
Na metamorfose do êxtase esqueceu a alma cujo destino
incerto e distante não interfere na pacificação espiritual que os corpos
conquistam na tumultuosa explosão dos sentidos. Mas ali não houve arrebatamento,
apenas conquista e saque de um corpo devastado, espada enterrada em bainha que
a fúria abriu e devassou, um corpo esmagando a alma de outro na pressa de
servir-se.
O abuso sexual foi o resultado das pulsões primárias de um
indivíduo anacrónico, que não fizera a catarse da violência.
Agora até o místico tugúrio de anacoreta tinha virado palco
de profanas fantasias que o carácter confessional dos parceiros transformara em
incestuosas investigações eróticas da geografia de um corpo flagelado. O êxtase
parece tanto mais sublime quanto maior tiverem sido a dor, a abstinência, o
desejo e o recalcamento. Faltou, na circunstância, o tempo, a sabedoria e a
sedução. Não foi a mulher que o sevandija procurou, mas o vaso em que se
aliviou.
A SIDA, o medo que lhe infundia, foi o pretexto que a si
próprio o padre ofereceu para buscar na freira o consolo cujas consequências
temia nas rameiras, a violação o prémio que se atribuiu pelos longos meses de
castidade sofrida. Ao menos não adicionou à fraqueza da carne o pecado
suplementar do preservativo. Desagradara igualmente a Deus, mas não ofendera
tanto o Santo Padre.
Apaziguados os desejos, libertos os humores, a freira, que
pensou arrancar a lâmina que a rasgou, acabou guardando entre as mãos a arma
que a ofendera, inútil, pegajosa, mole, onde adivinhava um hissope fundido pelo
vigor da aspersão. E nem sentia sequer revolta, medo ou vergonha. Começava a
deixar-se percorrer por uma estranha sensação de prazer igual à flagelação,
parecida com a do cilício, e sem dor, sem sofrimento, sem necessidade de se
imobilizar. Ousou mesmo uma discreta massagem como se de uma relíquia se
tratasse, relicário igual, quem sabe, a outro muito jovem de onde foi extraído
o santo prepúcio.
Deixou vaguear os olhos pelo próprio corpo que há muito não
via, pousou-os no outro corpo de que sempre afastara os pensamentos, deteve-se
nas diferenças de ambos e pensou que tudo poderia ter acontecido sem violência,
devagar, como quem reza, com gestos ritmados como se batesse no peito em ato de
contrição, mas o ímpeto que a magoou foi talvez o tributo indispensável à
tranquilidade que agora sentia. Quem sabe se não devia ao tumulto o prazer que
experimentava!
Não era violenta a clausura que extasiava? Não embriagavam
os jejuns? Não fazia a dor dos cilícios percorrer o corpo, todo o corpo, de um
doce calor de inebriante felicidade?
A dor que inicialmente sentira, a humilhação que sofrera, a
vergonha que a prostrara, foram a fonte de onde começou a jorrar uma ponta de
felicidade. Estranhos caminhos da natureza, complicadas formas de ventura, a
escrava conformada a procurar o caminho do perdão.
Continuou a segurar a arma que a trespassara, tomava-lhe o
peso, acariciava-a e sentiu que a coisa mole ganhava dureza, assumia forma,
tomava cor. Sentiu-se confusa, fechou os olhos, deixou-se escorregar para o
chão e aguardou. Outra vez a dor e o fogo a percorrerem-lhe as entranhas, agora
já sem violência, um corpo sobreposto em movimentos ritmados, a dor a
esbater-se, o próprio corpo a ensaiar o acompanhamento do outro, uma indizível
felicidade a percorrê-la, uma sensação idêntica à da libertação do cilício, sem
pensar em intenções do Papa, contrações incontroladas, prazer a jorros, um
êxtase sublime, como se naquele momento, sozinha, tivesse libertado o mundo de
todos os pecados.
Perdeu a noção do tempo. Ao ver o seu Diretor Espiritual
abandonar a cela sem uma explicação, sem uma palavra, confusa, esmagada, teve
ainda forças para lhe sussurrar: venha mais vezes, volte...
Na manhã seguinte seguiu com o costumado interesse a santa
missa que o mesmo padre celebrava. Sentia os olhos dele cravados em si e, à
força do hábito, continuou a olhar o chão. Doía-lhe o corpo cansado de todos os
esforços da véspera acrescidos com a dificuldade de disfarçar da cela os sinais
de sangue e outros fluidos.
Na confusão do cérebro todos os movimentos eram agora, não
para glorificar Deus e o seu divino nome, mas gestos de estimulante
lubricidade. Mesmo o turíbulo, no seu vaivém, lembrava-lhe o corpo cujos
movimentos esmagaram o seu, mais lentos, é certo, e, talvez por isso, Imaculada
sentia percorrê-la uma estranha sensação de felicidade e um calor deslumbrante
que a transportava ao êxtase. Lembrou-se das descrições de Santa Teresa e
sentiu em si as mesmas emoções, a mesma onda de felicidade que a inundava,
duvidosa de ser ou não ser o Divino Mestre que a percorria nas fantasias bem
humanas que haviam despertado de forma incontrolável.
Enquanto o oficiante celebrava não eram já as palavras
pronunciadas que lhe ouvia, mas a língua que as articulava que sentia. Os
conselhos de sempre traziam apenas o bafo quente que lhe envolvia o pescoço. A
bênção que lançava devolvia-lhe os dedos que a descobriram.
Imaculada sentia-se transportada ao céu por que tanto tinha
implorado. Rezava agora com paixão, sem intenções prévias, cada vez mais
convicta de que esse dia traria de novo a visita privada do confessor que
talvez passasse a confessado.
E assim foi. A cela deixou de ser o espaço de reflexão sem
sentido para se converter na antecâmara do desejo. Perdeu o ar frio e funesto
para ganhar a dimensão dum ninho fofo e proporcionar a visão de uma centelha do
paraíso.
À mesma hora do dia anterior, a preceder as vésperas,
Imaculada viu claramente que não era uma sombra que penetrara a cela. Era o
homem que esperava. O ascetismo místico tinha ganhado uma nova dimensão e ia
ser temperado pela explosão simultânea dos fluidos em reparadores espasmos
fruídos sofregamente, sobre o catre, ou no chão, no exíguo espaço de uma cela.
E não mais pediu ao Padre Agostinho para voltar. Dia após dia o hissope vinha mergulhar suavemente na caldeirinha para aspergi-la vigorosamente no momento certo, enquanto ambos, à medida que exultavam com as delícias da alcova, se foram esquecendo do martírio do seu Deus.
In Pedras Soltas (ed. 2006) – ortografia atualizada
Ponte Europa / Sorumbático
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