Reflexões e perplexidades sobre a morte de Sá Carneiro (4-12-1980), o 25 de novembro e a História da Democracia em Portugal

Entendamo-nos. A democracia foi-nos oferecida em 25 de Abril de 1974 pelos capitães de Abril na madrugada em que floriram cravos nos canos das espingardas. Alguns civis ficaram desolados por não terem sido eles a derrubar a ditadura.

Da Revolução emergiram dois líderes na Direita, Sá Carneiro e Freitas do Amaral, que se juntaram ao PCP, com muitos anos de luta, e ao PS, ambos anteriores à Revolução, já com líderes estáveis. Álvaro Cunhal, Mário Soares, Sá Carneiro e Freitas do Amaral viriam a ser os arquitetos civis da atual CRP.

Há 42 anos, 4 de dezembro de 1980, faleceram, em Camarate, na queda da aeronave em que seguiam, o PM, Sá Carneiro, Amaro da Costa, ministro da Defesa, e mais cinco acompanhantes. Iam para o comício do Porto, na tentativa de elegerem PR um general de passado sombrio, Soares Carneiro, ex-diretor do presídio de S. Nicolau, que obedecia a Sá Carneiro como obedecera a Salazar.

Ramalho Eanes, que representava os vitoriosos do 25 de novembro, era o obstáculo de quem esteve ausente do 25 de Abril e não evitou a vitória do Grupo dos Nove. Vasco Lourenço tinha mandado calar Jaime Neves, “já disseste demasiadas asneiras”, e Melo Antunes, autor e ideólogo do Documento dos Nove, disse o necessário e óbvio, o PCP é imprescindível à democracia.

A Direita precisava do 25 de novembro para se legitimar, e também aí perdeu, com a extrema-direita ansiosa para eliminar o programa do MFA, a “Revolução dos Três D” (Democratizar, Descolonizar, Desenvolver), que foi honradamente cumprido.

Sá Carneiro teve, após a morte, a derrota eleitoral do PR, e a direita democrática perdeu o líder carismático capaz de evitar a ascensão da extrema-direita. Continua uma grande referência da democracia. Foi, aliás, uma figura fascinante, nas vitórias e nas derrotas.

O líder da direita que o substituiu, Cavaco Silva, foi o regresso ao salazarismo pela via democrática, com o rancor que o levou a reintegrar nas Forças Armadas o gen. Soares Carneiro, de quem fez CEMGFA, numa afronta gratuita ao PR Ramalho Eanes e a toda a esquerda, que o elegeu, no exótico regresso da atividade política à vida militar ativa.

Volvidos 42 anos, os media, nas mãos da direita, esquecem a morte de Sá Carneiro, se é que o referem. No trágico acidente finaram-se duas figuras de primeiro plano, com altas funções no Estado e na direita democrática.

Talvez seja a decadência ética e cívica dos atuais partidos da direita que os faça ignorar a herança dos fundadores que, pelo menos, se bateram pela liberdade de expressão e deviam o prestígio político ao facto de terem divergido da ditadura.

Talvez a vergonha de terem de comparar Luís Montenegro a Sá Carneiro e Nuno Melo a Amaro da Costa, muito menos a Freitas do Amaral, cuja foto foi retirada da sede, iniba o PSD e o CDS de lhes evocar a memória.

Depois de terem ocupado os mais altos cargos do Estado com Cavaco, Passos Coelho e Paulo Portas, é o pudor que leva o PSD à amnésia do passado. O defunto CDS, tão dado a missas, nem uma novena de ação de graças ter mandado rezar, é prova de que o líder, Nuno Melo, ainda anda de cabeça perdida por ver o CDS afastado da AR.

O PSD e o CDS têm melhores defuntos do que os mortos-vivos que os lideram.

Recordemos Sá Carneiro, líder fascinante que há 42 anos faleceu no trágico acidente de Camarate, figura que atraiu intelectuais de primeira grandeza, como Natália Correia e Helena Roseta, que se envergonharam do sucessor, tal como o número dois, Magalhães Mota, e a nata do PPD que fundou a ASDI, sociais-democratas.

Sá Carneiro foi deputado da ala liberal da União Nacional onde defendeu a democracia cujo modelo temos. A sua enorme paixão por Snu Abecasis, figura de relevo nos meios intelectuais, proprietária da editora democrática D. Quixote, revelou a grandeza ética do político que não cedeu à direita reacionária.

Não podendo divorciar-se, por obstrução legal da Concordata da ditadura, impôs Snu ao País, como sua mulher, que o acompanhou na vida e, tragicamente, na morte.

Não lhe perdoou o bispo de Braga, Eurico Dias Nogueira, que condenou as cerimónias fúnebres religiosas que a Igreja e a Direita lhe prodigalizaram em orgia de propaganda ao gen. Soares Carneiro que, sem ele, seria um ditador, porque a Constituição conferia então largos poderes ao PR. Foi Eanes o claro vencedor, com apoio de toda a esquerda.

Na Madeira, Sá Carneiro impôs a presença numa procissão, sob o pálio, quando o soba A. J. Jardim ainda andava atordoado com os vapores da poncha e da União Nacional, e a direita o reverenciava como salvador.

Sá Carneiro foi um dos obreiros desta segunda República, figura que os sucessores não honram nem merecem. O elogio fúnebre que então lhe fez Natália Correia foi o adeus a um homem que deixou na História a marca da sua grandeza, uma figura que atraiu ódios e devoções sem deixar indiferentes.

Estas são as palavras que me ocorrem no 42.º aniversário da sua morte, as palavras de um adversário que o respeita e admira.     


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