A LIBERDADE QUE ABRIL NOS DEU
A “púdica” e manipuladora Censura
Por Onofre Varela
“Este número foi visado pela Comissão de Censura” era um recado estatal que todos os jornais estavam obrigados a imprimir dentro de um rectângulo dissimulado no rodapé de uma qualquer notícia ao fundo da primeira página. O governo de Salazar censurava as notícias não deixando publicar o que não interessava à ditadura… mas também é verdade que ninguém podia dizer que os jornais eram censurados em segredo… porque a “prova do crime” estava escarrapachada na primeira página de todos os jornais!… (Depois de Abril de 1974 censurou-se em segredo).
Recordo uma tragédia causada pelas águas da chuva de um Inverno rigoroso que fez transbordar o Tejo, isolou povoações e provocou mortes. Estávamos em Novembro de 1967 e a precipitação das fortes chuvas equivaleu a um quinto da precipitação anual. Na madrugada de 25 para 26, o Vale do Tejo foi inundado por cheias que ocorreram em toda a região de Lisboa. Foram atingidos os concelhos de Loures e Odivelas, afectando as freguesia de Póvoa de Santo Adrião e Olival Basto, Vila Franca de Xira e Arruda dos Vinhos. Na estação meteorológica do concelho de Lisboa foram registados 115.6 mm de precipitação num período de 24 horas, e na de São Julião do Tojal (concelho de Loures) 111 mm em apenas 5 horas.
Várias causas contribuíram para a gravidade das cheias, não sendo estranha a habitual falta de limpeza dos rios e ribeiras, mais a canalização subterrânea com dimensão insuficiente.
As inundações, associadas às precárias condições de habitação e à falta de ordenamento destruíram casas, estradas e pontes, deixaram milhares de pessoas sem abrigo e provocaram um número de mortos que permanece por contar até hoje. A censura mandou parar a contagem de cadáveres aos 462, mas estima-se que o número de vítimas mortais daquela noite tenha chegado aos 700.
As zonas de Vila Franca de Xira, Alenquer, Loures, Odivelas, Oeiras e Sintra, foram as mais afectadas por aquela que é considerada a maior catástrofe natural em Portugal depois do terramoto de 1755. À forte e ininterrupta chuva, juntava-se a água do rio que transbordou. Testemunhas disseram que enquanto as pessoas dormiam as águas subiram quatro metros em cinco horas, e no final contabilizaram-se vinte mil casas destruídas!
A dimensão da tragédia só foi percepcionada por quem a viveu, pois pelos jornais só se sabia que houve algumas inundações provocadas pela enchente do rio. A destruição e a morte, nas suas verdadeiras dimensões, eram para ser silenciadas.
À data eu cumpria serviço militar em Angola e as notícias que nos chegavam pela rádio apontavam para a necessidade de ajudar as populações afectadas. Criou-se um movimento militar animado pela ideia de cada soldado doar, no mínimo, 20 ou 50 escudos do seu pré naquele mês, o que faria uma soma com alguma dimensão. Todos os militares estavam dispostos a contribuir com tal ajuda.
Por aqueles dias o comandante da Companhia mandou reunir as tropas em formatura. A razão pela qual o fazia, ninguém sabia… mas todos apontamos para o discurso da dádiva, e formamos com a mente aberta para contribuirmos com uma parte do nosso pré.
O capitão surgiu envergando farda de gala, cordões dourados pendendo do ombro e presos no peito, e botas de cano alto reluzentes de graxa. Passou revista às tropas (não fomos avisados de tal inspecção, e em acampamento no mato não havia razão para estarmos apresentáveis, bonitos e bem cheirosos!) e castigou com carecadas quem tinha nódoas na farda, camisas engilhadas, botas sem graxa, cabelo comprido e barba por aparar!
Todos os militares da companhia estavam em falta com alguma das “alíneas” observadas… foi um rapar de cabelo geral… e tudo isto num momento dramático para o qual estávamos preparados para ajudar… mas a ajuda não nos foi pedida!… A falta de sensibilidade de então, não era só do governo ditatorial e da censura que calava a dimensão da tragédia… também passava pelos militares de patente… como se viu!…
(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)
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