A história de um transplante fracassado
No início da década de sessenta do século XX ainda viviam em aldeias raianas médicos que serviam as populações rurais e começaram a operar milagres, a seguir à guerra, com os primeiros antibióticos.
Viviam sobretudo dos alqueires de cereal com que se
avençavam as famílias para quem o médico estava disponível 24 horas por dia,
chovesse ou nevasse, e não cuida agora o cronista de enaltecer a generosidade
dessa geração de médicos que se consumiu com parcos recursos farmacêuticos e
sem hospitais de retaguarda.
É a história nua e crua de João Semana, fracassado na
cirurgia pioneira que ousou, que vai contar-se.
Desta vez o cronista omite o nome de batismo do médico e dos
protagonistas da cirurgia na aldeia remota onde o contrabando era atividade
fora da agricultura de subsistência, chamemos-lhe Castanhedo, onde os
contrabandistas eram vistos como profissionais corajosos e como inimigos os guardas-fiscais.
João Semana tinha consultório na sede concelho onde uma
placa de grandes dimensões o anunciava, com o subtítulo de médico, seguido de
«Ex-Prático Clínico dos Hospitais da Universidade de Coimbra», onde se formara
em Medicina e Cirurgia, como era uso, e fizera 1 ano de estágio, período designado
por Prática Clínica, obrigatório.
Era ali que atendia doentes às terças e quintas-feiras, mas
era em Castanhedo que vivia, exercia o múnus e onde se abalançou à cirurgia
que, se bem-sucedida, seria pioneira.
O Rafael, nome fictício, ficara mutilado da orelha esquerda numa
rixa em dia de mercado. O excesso de vinho e de violência levara a Rafael parte
da orelha, decepada entre os dentes de outro mancebo com que se envolvera em
desacato. Não seria tragédia a marca violenta do dia de mercado se não tivesse
a intenção de ser guarda-fiscal.
Foi no tempo em que as aldeias de contrabandistas começaram
a dar guardas-fiscais. O Rafael sabia que a vida do guarda-fiscal era melhor do
que a de contrabandistas ou a de agricultor, apesar da miséria dos ordenados
dos soldados.
Queixou-se ao médico do desgosto e perguntou-lhe se haveria
remédio. João Semana incitou-o a encontrar dador, ele lhe repararia o estrago.
Rafael lembrou-se, e bem, do Silvestre, um bêbado contumaz,
capaz de trocar a vida por vinho. A troco de quinhentos mil réis, cinco notas
batidas, disponibilizou a orelha do mesmo lado. E foi a cair de bêbedo que caminhou
para o sacrifício.
João Semana, tinha no currículo a cosedura de um nariz
dependurado pela pele, rasgado no vidro partido de uma janela, em que o êxito
fora total numa mulher da aldeia. Sem vestígio de queloide a enegrecer-lhe a
cirurgia, dera-lhe merecido prestígio e afoiteza.
No início da década de sessenta, com o dador e o recetor no
consultório, procedeu o médico à receção da parte do órgão necessário ao
transplante. Ouviram-se na rua alguns gritos e obscenidades do dador antes de
as repetir o recetor quando, durante mais tempo, sentia o avivar dos bordos da
cicatriz e a cosedura da cartilagem e do tecido envolvente, enquanto o bêbedo
Silvestre se dirigia à taberna para esquecer as dores.
Foi demorada a operação, mas foi com um sorriso de
esperança, compartilhada com o médico, que abandonou o consultório com um penso
enorme preso por adesivo à cabeça e pescoço.
Foram noites e dias de angústia a dormir com cuidado para
não destruir o que custara dinheiro e sofrimento e lhe podia manter a esperança
de ser soldado da Guarda-Fiscal onde não podia entrar sem as orelhas inteiras.
O Silvestre, arrependido de ter vendido a orelha, resignado,
tratos são tratos, continuou a emborrachar-se e a destruir o fígado, e o Rafael
a sonhar com a Guarda-Fiscal.
Quando voltou ao consultório, depois do período previsto, a
ansiedade do Rafael e a do médico eram comuns e enormes. O médico procurou
retirar com delongas e cuidado o penso que prendia o pedaço de órgão do
Silvestre à orelha mutilada do Rafael, por entre os vapores de éter que se
respiravam no consultório.
Quando o adesivo se soltou, perante a desolação do médico,
só se conhece o desabafo deste, merda, e a tristeza do Rafael que viu no
fracasso desfeito o sonho.
Em Castanhedo, as pessoas não ouviam as queixas do Silvestre,
tinha recebido dinheiro, não podia queixar-se. Quanto ao Rafael, pois, os
médicos nem sempre fazem milagres.
Comentou-se muito, primeiro, foi-se acolhendo depois, com
sorrisos, a passagem por qualquer dos dois desorelhados que ora se encontram em
longa defunção no cemitério local.
O médico continuou a exercer pacatamente a profissão e, a
partir de 1967, a ser referido como o Barnard do Castanhedo, depois de
Christiaan Barnard ter procedido com êxito ao transplante de um coração que
aguentou durante 18 dias, até uma pneumonia o levar.
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