O corporativismo da Ordem dos Advogados
As posições do Senhor Marinho Pinto são bastante claras. Na sua visão, a Ordem dos Advogados não serve para servir o interesse público, mas sim os interesses sindicais de classe dos advogados, nomeadamente através do estabelecimento de barreiras jurídicas corporativas no acesso à profissão. Ou seja, um "condicionamento industrial" no acesso à profissão de advogado, subvertendo as regras do mercado dos serviços jurídicos.
O regulamento apreciado negativamente pelo Tribunal Constitucional é bem exemplo disso:
Basta ver o seu preâmbulo para se ver claramente quais os objectivos, bem como a forma falaciosa (para não empregar um adjectivo mais forte) e superficial, com o qual esta direcção da OA procura fundamentar esses objectivos:
"A Advocacia massificou-se, passando de cerca de 6.000 Advogados em meados dos anos 80, para mais de 30.000 na actualidade. O resultado mais visível desse fenómeno foi a degradação da profissão, com perda da sua secular dignidade funcional e prestígio social. Hoje, existem em Portugal milhares de Advogados que lutam desesperadamente pela sobrevivência profissional que só poucos conseguirão. O rácio de Advogados por habitantes aproxima -se do dos países da América Latina, afastando Portugal dos modelos da Advocacia existente nos países desenvolvidos da Europa".
Falaciosa (para ser politicamente correcto) porque há bastantes países da UE com uma maior ratio de advogados por cidadão do que em Portugal: Itália com 3.55 advogados por mil habitantes, a Grécia com 3.45 e Espanha com 3.36. Como referência, no mesmo período temporal (2008), Portugal tinha 25.695 advogados, ou seja, aproximadamente 2.50 advogados por mil habitantes (dados do Conselho das Ordens Europeias dos Advogados, submetidos pelas respectivas Ordens nacionais). E o país no mudo com mais advogados são os EUA, economia mais avançada do mundo, com 3.65 advogados por mil habitantes.
Superficial, por não dissociar o aumento do número de advogados de 6.000 (quando?) para mais de 30.000 (sic) de toda uma constelação de factores:
(1) a evolução da sociedade portuguesa de uma sociedade rural e autoritária para uma sociedade urbana, terciarizada e democrática;
(2) a evolução da qualificação profissional e do acesso alargado à educação por parte da população;
(3) o aumento da litigiosidade na sociedade, em consequência da evolução social, económica e política verificada, associado à inexistência ou parca utilização dos mecanismos de Resolução Alternativa de Litígios, que aliás o Senhor bastonário qualifica como "uma justiça clandestina em que os juízes são escolhidos e pagos pelas partes" e como um "retrocesso civilizacional". Basta aliás ver que os países (do Norte da Europa) com menos advogados (Alemanha, Holanda, Escandinávia, França) são curiosamente aqueles em que a Resolução Alternativa de Litígios (em que frequentemente não há necessidade de intervenção de advogados) está mais enraizada.
O Senhor Bastonário e a sua "entourage", que por ora domina a Ordem dos Advogados tem uma forma perfeitamente anacrónica de encarar as novas realidades do mundo jurídico, procurando apenas colocar entraves administrativos corporativos à concorrência, às sociedades de advogados, e ainda preservar o lucrativo mercado dos serviços jurídicos nas mãos de quem o controla neste momento.
Os cidadãos que, tendo qualificações para tal, pretendam aceder à profissão de advogado, devem poder a ela aceder livremente, sem entraves corporativos, pré-juízos empíricos e carecidos de fundamento sobre a qualidade da sua formação (Universidade Privada/Diploma pós-Bolonha), e sem obstáculos desproporcionados. E a sua qualificação deve ser aferida da forma mais objectiva e transparente possível.
Se a Ordem dos Advogados estivesse verdadeiramente importada com a qualidade dos candidatos à advocacia, faria melhor em reforçar e controlar a qualidade do estágio (neste momento pouco mais que um aprendizado de feiticeiro, frequentemente baseado em trabalho não remunerado por parte do estagiário, acompanhado de formação na OE em que frequentemente os formadores se preocupam mais em substituir-se aos docentes universitários de direito do que em dar formação em prática forense), a competência e a forma de recrutamento dos formadores (bastantes formadores são de competência duvidosa), bem como em assegurar dignidade e remuneração aos advogados-estagiários.
Ou talvez ir-se mais longe e, como em alguns países, desblindar o monopólio da OA, liberalizando a profissão de advogado. Algo que é tema de debate em muitos fora internacionais, incluindo a UE (lembremo-nos do debate relacionado com a Directiva Bolkenstein), a OMC e em muitos Estados-membros da UE. Por muito aliciante que seja a ideia de auto-regulação profissional, o manifesto conflito de interesses entre a auto-regulação profissional e as reivindicações corporativas leva a que qualquer cidadão reflicta se a auto-regulação profissional não será pouco mais do que um eufemismo para a "legitimação de um monopólio profissional mantendo a profissão fora do escrutínio público" (Richard Abel, American Lawyers).
A extinção das ordens profissionais de inscrição obrigatória seria um excelente passo para eliminar os últimos resquícios do corporativismo medieval. Não nos esqueçamos que a certificação de determinadas profissões é uma competência originária do Estado, que se encontra delegada na Ordem dos Advogados. E o Estado tem a legitimidade para avocar essa competência a qualquer momento.
Comentários
As Ordens profissionais (e isso não é apanagio da dos Advogados) são orgenismos corportativos. São por assim dizer os "lobbys" que por cá são tolerados. Neste ponto estamos de acordo.
Agora, acreditar que a formação profissional tem níveis de qualidade que não devem ser verificados é dar o aval a uma situação caricata que ocorreu em Portugal logo após o 25 de Abril. A absurda proliferação de faculdades privadas que administraram, por exemplo, cursos de Direito (existem outros exemplos infelizmente) por este País, muitas praticamente no vão de escada, não abona a favor dos profissionais. Felizmente que assistimos a uma meteorica reversão desta situaçõs, mas por outro lado, os seus nefastos efeitos perdurarão.
Terá de haver algum tipo de regulação.
E aí é que pode começar uma interessante discussão. O acesso a este tipo de profissões - caso não exista um controlo de qualidade da formação - nunca poderá ser livre.
Ao fim e ao cabo as saídas profissionais "livres" padecem das mesmas maleitas dos mercados "selvagens"...
São os problemas "globais".