Afeganistão – Os dez dias que abalaram o Ocidente

Seria preciso o talento e entusiasmo de Jonhn Reed, a descrever os acontecimentos da cidade de Petrogrado durante a Revolução russa de 1917, em “Dez Dias que Abalaram o Mundo”, para agora, transformado o entusiamo em raiva, alguém fazer dos dez dias que abalaram o Ocidente uma obra literária daquela dimensão. Aliás, só os talibãs poderiam descrever, em tom épico, a epopeia da sua vitória, se acaso fossem dados à cultura como à fé e à barbárie.

A chegada dos talibãs a Cabul, em apenas 10 dias, foi a confirmação dos receios que as 3 últimas administrações americanas sentiram de uma derrota militar que acabaria por acontecer. Biden foi o executor da retirada que já preconizava na presidência de Obama e que Trump negociou com os talibãs.

O que, nem no pior dos cenários parece terem previsto, foi a rapidez com que os talibãs se fizeram fotografar no Palácio do Governo, em Cabul, uma imagem de enorme valor simbólico da facilidade com que EUA e aliados da Nato foram derrotados.

Enquanto muitos dos que me estão próximos nas ideias se regozijam com a derrota dos EUA e dos aliados da Nato, sinto-me desolado com a tragédia que só agora se acelera.

A vitória da Rússia e da China, especialmente da última, porque a derrota dos inimigos é uma oportunidade acrescida para a emersão da nova liderança mundial, é uma derrota das democracias e da civilização, ainda que a vitória da Rússia e da China seja precária, o islamismo político é um veneno que ambas querem evitar, e os derrotados se possam ter comportado como agressores.

Há de enganar-se amargamente quem, nos países que respeitam os direitos humanos e a democracia, julgar que a derrota dos EUA favorece os valores civilizacionais da Europa do Renascimento, da Revolução Francesa e do Iluminismo.

Não adianta referir que o islamismo deu pensadores como Avicena e Averróis, que, nas Cruzadas, eram selvagens os cristãos e mais civilizados os muçulmanos, que, por cada ato terrorista de inspiração islâmica se exponha o terrorismo cristão ou judaico. O cristianismo foi moldado pelo direito romano, o secularismo e a repressão política sobre o clero, o que tornou possível a laicidade e a democracia, e o islamismo jamais se livrou do direito teocrático. No Islão, o pecado e o crime são a mesma coisa.

Chegaram a Cabul os que odeiam a música e o toucinho, a arte e a liberdade da mulher, o livre-pensamento e a democracia; os que destruíram os Budas de Bamiyan, saquearam o Museu Nacional de Cabul e destruíram o património cultural quando foram poder; os que impediram as mulheres de estudar e as transformaram em propriedade sua como se fossem animais domésticos; os que criaram, quando foram poder, o Ministério para a Propagação da Virtude e Prevenção do Vício do Afeganistão.

Alguém imagina a tragédia das mulheres que estudaram e sentiram o cheiro a liberdade, nos últimos vinte anos, a serem abatidas na rua por não usarem burka ou véu islâmico, a verem recusados às filhas o direito à educação e o mínimo de autodeterminação de que beneficiaram nas cidades, agora num campo de concentração tribal e religioso?

Quem, assumindo-se como progressista, pode regozijar-se com a derrota dos EUA e dos seus aliados ocidentais?

Ponte Europa /Sorumbático

Comentários

Jaime Santos disse…
Ninguém, a não ser aqueles para quem a fragilização do Ocidente é mais importante que a proteção dos direitos das mulheres e homens afegãos. Mas convenhamos, quem isso deseja normalmente não se preocupa muito com os direitos individuais e prefere antes as denominadas 'liberdades coletivas'...

Julgo que a retirada era inevitável dada a impopularidade da ocupação (e o seu custo em tropas e recursos financeiros para os EUA), fruto da maneira criminosa como a guerra foi conduzida (ataques de drones a casamentos não contribuíram seguramente para a fama dos ocupantes ou do Governo afegão, que dependia deles).

Isto dito, a forma como a retirada foi efetuada foi uma tragédia de erros, o que torna a acusação de Biden e do Secretário-Geral da NATO, de que os afegãos foram cobardes e não defenderam o seu País, particularmente insultuosa.

Se o exército afegão foi treinado e equipado pela NATO e se dissolveu perante o avanço dos taliban, alguma culpa os EUA e aliados devem ter nisso. Biden em particular poderia ter evitado deitar mais sal na ferida e assumido as suas responsabilidades. Viver no Afeganistão é afinal um ato diário de coragem.

Aqui fica uma cronologia do processo de retirada de Trump a Biden. Olhando para o que foi dito à luz do que agora sabemos, algumas das frases parecem saídas de uma farsa absoluta:

https://www.factcheck.org/2021/08/timeline-of-u-s-withdrawal-from-afghanistan/
Monteiro disse…
Segundo Eça os anos de 1847 e 1880 têm em comum o facto de terem sido os anos em que o Ocidente invadiu e destruiu o Afeganistão a que acresce o ano de 2001 como é do conhecimento geral. Creio que os ocidentais respeitam mais os direitos animais do que os direitos humanos. Segundo Marx, os homens formaram sempre ideias falsas sobre si mesmos, sobre aquilo que são ou gostariam de ser. Organizam as suas relações mútuas em função das representações de Deus que trazem na cabeça e a partir daí julgam que tudo lhes é permitido. Eça informa que os Ingleses invadiram o Afeganistão, e aí vão aniquilar tribos seculares, desmantelando vilas, assolando searas e vinhas, apossam-se, por fim, da santa cidade de Cabul; Sai um velho emir apavorado e colocam lá outro de raça mais submissa, que já trazem preparado nas bagagens, com escravas e tapetes; e logo que os correspondentes dos jornais telegrafam a vitória, o exército, acampado à beira dos arroios e nos vergéis de Cabul, desaperta o correame e fuma o cachimbo da paz... O Financial Times há dias alertava que o Afeganistão ainda ia acabar em tragédia, não obstante o erro de si mesmos que Marx retrata na Ideologia Alemã eles persistem na destruição seja no Caribe, na América Latina, no Oriente ou onde calhar e há sempre os serventuários do costume que vão atrás à procura do rebusco no pelotão dos aliados.
Jaime Santos disse…
Marx era um excelente analista da natureza humana, Monteiro, só que também era um ingénuo que sonhava que ela era moldável pela (sua) ideologia. Quem tinha razão era Bakunine que pensava que o único propósito de uma ditadura (do proletariado ou outra) era a sua própria perpetuação.

A venalidade do capitalismo prolongou-se na venalidade do socialismo, cujos fautores (a começar logo por Lenine e Trotsky) também pensaram que tudo lhes era permitido em nome da futura sociedade comunista (o seu Deus de substituição).

Não esquecer que a presente tragédia no Afeganistão não se iniciou em 2001, iniciou-se em 1978 com a revolução Saur e a subsequente invasão soviética, com o objetivo de proteger um Governo de um Estado cliente, Governo esse que se desmoronou assim que o exército soviético retirou... Tal como aconteceu agora com os EUA...

E o que é curioso é que o último Rei Afegão reinou quase 40 anos... Paralelos na História há realmente muitos...

Agora Marx teria uma desculpa, já que a experiência que propunha não tinha ainda sido tentada. Os seus herdeiros atuais não têm desculpa nenhuma...

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