A democracia e a laicidade
Independentemente do apuramento das razões que estiveram na origem do atentado que, no dia 15, se frustrou em Liverpool, Reino Unido, e se limitou a trucidar o terrorista que seguia no táxi, enquanto o condutor lhe fechou as portas e fugiu do veículo, há fundadas suspeitas de que o alvo do facínora fosse a catedral.
Penso que a luta contra o racismo não se faz com a omissão
da etnia, origem ou religião do criminoso, sobretudo se a última está na origem
da crueldade de quem julga ter uma eternidade de delícias à custa da própria
imolação e do sofrimento dos infiéis.
Ignorar o regresso das guerras religiosas será politicamente
correto, mas é suicida. Não importa se este foi mais um caso de fanatismo
religioso pois não faltam casos recentes e preocupações quotidianas com imposição
de preconceitos e exigências pias que minam a civilização e a democracia.
Há pessoas para quem falar de laicismo é heresia, como se
pudesse combater-se a deriva criminosa de determinada crença sem que o Estado
democrático tenha a determinação de impor a separação às Igrejas e combater as
crenças que apelem à violência. Não há democracia sem que os cidadãos sejam
livres de ter qualquer crença, descrença ou anti-crença. É tão legítimo crer
que Deus criou o Homem como ter sido este a criar aquele.
Há, aliás, um direito que os intolerantes não respeitam, o
de descreditar, ridicularizar e combater, pela palavra, desenho ou gesto,
qualquer religião ou o ateísmo. Preferem as bombas. Sagrada é a Declaração
Universal dos Direito Humanos, e ímpia a sua recusa.
A Europa do Renascimento, do Iluminismo e da Revolução
Francesa não pode ajoelhar-se perante crenças que, no passado, a ensanguentaram
e, no presente, a põem a rastejar, com reiteradas cedências e uma atmosfera
cada vez mais carregada de medo.
Temos de nos interrogar sobre a licitude da resistência ao
quadro civilizacional europeu, das exigências que humilhem um dos sexos, neguem
a igualdade de direitos perante a lei, a supremacia da democracia sobre o
tribalismo, a liberdade sobre o comunitarismo.
As regras de higiene, as vacinas e a alfabetização não se discutem,
impõem-se quando o interesse coletivo, democraticamente sufragado, as
legitimam. A vontade dos deuses, há tantos, não pode sobrepor-se à dos homens.
Não podemos viver sob uma atmosfera de medo ou permitir que
a pretensa lei de Deus se sobreponha às leis que a democracia liberal aperfeiçoou,
depois de várias guerras, de muito sangue e demasiadas iniquidades.
O totalitarismo religioso não é mais benigno do que o laico,
e é bem mais difícil de ser erradicado, mas a opinião pública não pode amolecer
sob o peso de alegadas tradições e costumes tribais.
Já nos bastam os livros sacralizados das ideias dos
patriarcas tribais da Idade do Bronze, e que urge desmascarar.
Ponte Europa / Sorumbático
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