A carreira literária de um adolescente

Comecei a vida literária aos 13 anos, com uma carta de amor. Penso que, na década de 50 do século passado era o habitual, quando despertavam as hormonas aos rapazes, sem saberem o que isso fosse, e duvidosa era a antecipação feminina, na cidade da Guarda.

Já me apaixonara de forma intensa e várias vezes, sonhando o que queria, sem coragem para o dizer, em diversas paixões que surgiam violentas e se desvaneciam logo, antes de verbalizar ou escrever o que sentia, sem dar qualquer sinal a quem desejava.

As primeiras cartas de amor, autenticadas, foram escritas depois da adolescência com a timidez que hoje me faria corar, pela ingenuidade e floreados românticos, quando era já forte o desejo e só a vergonha o excedia.
Foi aos 13 anos que escrevi a primeira carta de amor e disse o que sentia... o Quinzinho, colega da mesma idade, que me induziu com uma moeda de cinco escudos, adiantada, e a que acrescentei a exigência de outra, dependente do sucesso.

Era mais fácil escrever a carta de outrem do que a própria e, ao escrever, dada a escassa beleza da destinatária, intuí a forte probabilidade de duplicar os honorários, o que cedo aconteceu. O Quinzinho era de boas contas e acertou-as, mas exonerou-me da função. Não tive acesso à resposta que duplicou a avença, e o namorico lá começou com olhares eloquentes entre os dois, à distância que o medo e o pudor recomendavam numa cidade de província, pia e de bons costumes.

Um ano depois escrevi nova carta. Era dirigida a Arlindo Vicente, candidato a PR, cuja leitura do panfleto de apresentação aos portugueses me tinha empolgado. Ofereci-lhe o meu apoio, antes da sua desistência a favor de Humberto Delgado. Essa carta subversiva não consta do meu processo da Pide, no espólio da Torre do Tombo, e nem o advogado, que um dia me seria apresentado pelo juiz da comarca da Lourinhã, nem a Pide se interessarm pela inútil oferta.

Nesse mesmo ano ainda escrevi uma carta a pedir namoro à Marina, em nome do 4.º C, e seguiam-se numerosas assinaturas da turma que lhe declarava, com dezenas de nomes, a homenagem devida à beleza da colega transferida de outro liceu e que nos fascinava com os olhos grandes e enormes pestanas. Era uma declaração coletiva de amor.
Ficou impune a imprudência do escriba porque a Marina não publicitou a carta, nem lhe respondeu, evitando ao reitor a intervenção disciplinar por motivos que certamente a sua vocação repressiva descobriria.

Comecei então a escrever um romance, “O crime do padre Inácio”, onde era evidente a inspiração no título do romance de Eça, que ainda não lera. Tenho a ideia de ter escrito mais de uma centena de páginas com um anticlericalismo ingénuo e a ‘obra’ acabou nas mãos do Fernandes, que nunca mo devolveu. Não perdeu grande coisa a literatura nem o autor, e o manuscrito, confiado ao colega de turma, estava condenado a perder-se.

No 5.º ano do liceu a vida literária do adolescente seria suspensa da pior maneira. O Dr. Ferreirinha era professor da turma pela primeira vez e mandou fazer uma redação com tema livre. Não sei o que escrevi nem sobre quê. Apenas recordo a entrega das redações, enquanto anunciou sucessivamente suficientes, medíocres, maus, um ou outro bom, até me entregar a minha sem classificação e com um comentário escrito, “o aluno não tem maturidade para escrever desta maneira”, enquanto me acusava, de viva voz, de a levar escrita, de casa.

Vermelho de raiva e da humilhação, rasguei em pedacinhos a manuscrito, enquanto ouvi a ordem de expulsão da sala e, sem me deter, o anúncio de uma falta de castigo.

Terminou assim, de forma pouco gloriosa, uma carreira que mal começara.

Ponte Europa / Sorumbático

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