Estarão todos doidos?!…

Por

ONOFRE VARELA - Vice-presidente da Associação Ateísta Portuguesa

Ultimamente tornou-se moda contestaa História, pretendendo reescrevê-la de acordo com um certo pensamento divorciado dos factos que a fizeram. Nesse sentido há atitudes vândalas contra estátuas e monumentos, como fizeram à imagem do Padre António Vieira, em Lisboa, quem acusade ter pactuado com a escravatura e os maus tratos aos povos indígenas do Brasil; ao Monumento aos Descobrimentos, em Belém… como se não fosse um facto histórico dali terem partido as caravelas dos nossos marinheiros quinhentistas, e como se tal facto não fizesse parte da História, nem representasse um modo de se ser e de se fazer, num determinado tempo e lugar, em determinadas circunstâncias ditadas pelo evoluir da sociedade e do próprio pensamento social e filosófico que faz cada tempo!

A História conta-nos os feitos dos nossos antepassados, quer nós gostemos, ou não, de algumas narrativas. A História não é um petisco que se come, ou não se come, de acordo com os nossos gostos gastronómicos: é o registo de factos que não podem ser mudados. O meu professor de História, na Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis, definia História como “uma sucessão de sucessos sucessivos que sucedem sucessivamente sem cessar”… agora  uns patuscos que, ao estilo de Camões, gritam “cesse tudo o que a musa antiga canta…” por questões ideológicas actuais, alheias aos factos que fizeram a HistóriaEm Julho último, por exemplo, indígenas do Canadá queimaram igrejas católicas, movidos pelo “desrespeito aos autóctones”, por parte de alguns padres em algum momento da História!

Ultimamente uma notícia divulgada pelo jornal espanhol El Mundo (edição de 10/9/2021) dá conta de, também no Canadá, uma instituição conservadora que agrupa 30 escolas francófonas de Ontário ter retirado das suas bibliotecas cerca de cinco mil livros que acabaram na reciclagem do papel, e outros em fogueiras “purificadoras” à boa maneira da Inquisição Católica! Algumas das obras “diabólicas” que mereceram tal fim, eram histórias de Banda Desenhada de Tintim e de Astérix!… E porquê?… Por, presumivelmente, a obra Tintim no Congo (de 1931) conter racismo. Igual acusação é dirigida ao Astérix (da excelente dupla de criadores Albert Uderzo [desenho] e René Goscinny [texto]) alegadamente por “falta de respeito pelas tribos índias do Canadá” (!?!)…

Os censores são umas bestas!… Não sabem destrinçar sátira e humor ficcional, de realidade histórica!… Também Pocahontas e Lucky Luke não escaparam à cerimónia de “purificação nas chamas”, e o conselho escolar declarou que, com tal acto “enterramos as cinzas do racismo, da discriminação e os estereótipos, com a esperança de as crianças crescerem num país inclusivo em que todos possam viver com prosperidade e segurança” (!?!).

Mas… o que é isto?!… Estará tudo doido?!… Se esses “puristas do pensamento” um dia acordarem com vontade de irem mais longe nessa purificação tomada como cruzada… vão ter de queimar a Bíblia!… É que os “textos sagrados” permitem que os pais vendam as suas filhas (Êxodo: 21; 7-8) “E se algum vender a sua filha […] não poderá vendê-la a um povo estranho”. E também permitem a escravatura (Levítico: 25; 44 – 46) “E quanto ao teu escravo ou à tua escrava que tiveres […] deles comprareis escravos e escravas […] também os comprareis dos filhos dos forasteiros que peregrinam entre vós […] e possuí-los-eis por herança para os vossos filhos depois de vós”!… Exactamente como se o escravo fosse um objecto de ser usado de mão em mão, assim como uma jarra ou um penico!

Gostava de conhecer o comportamento social diário desses “puristas-queimadores-de-livros” alegadamente por “respeito aos autóctones”! Se calhar ainda ia concluir que alguns deles mereceriam ocupar o lugar dos livros nas suas tão queridas fogueiras!… Estará tudo doido, ou sou eu que estou a ver mal a coisa?!…

(O autor obedece ao último Acordo Ortográfico)

Comentários

Jaime Santos disse…
Como dizia Fernando Rosas recentemente acerca da classe política portuguesa, incluindo da Esquerda, esta não escapa à narrativa luso-tropicalista.

Parece que Onofre Varela, ao confundir atos com feitos, também não.

O historiador Paulo Pinto aqui há uns anos publicou um excelente e controverso texto em que dava voz à voz horrizada de Tomé Lopes, a bordo com Gama na sua segunda viagem à Índia, pelo tratamento que este deu a um navio carregado de peregrinos que vinham de Meca (nesse tempo os talibãs estavam do lado de cá, e nem sequer eram cruzados):

https://daliedaqui.blogspot.com/2016/03/paulo-pinto-os-traques-do-gama.html

Eu, pelo meu lado, tive que ler um artigo num jornal indiano, escrito por um nativo do Sri Lanka, para saber que eles ainda hoje se lembram da destruição causada pelos Portugueses no então Ceilão do século XVI, em que templos budistas foram destruídos pela espada que dilatava a Fé e o Império.

Longe de mim querer julgar homens de então pelos valores de hoje, deixo isso às palavras de Tomé Lopes ou então à condenação de um de las Casas, que não se limitou a criticar a colonização espanhola das Américas.

A Presidenta da Junta de Madrid de certeza que não gostaria de ler a prosa do Bispo de Chiapas, bem mais cortante que o pedido de perdão do Papa Francisco pelos crimes da Igreja, que parece que chocou a senhora.

Convenhamos, é verdade, os protestos contra as estátuas e contra a celebração de uma História que contém seguramente eventos, pessoas e descobertas científicas e tecnológicas de que nos podemos orgulhar (os Espanhóis podem seguramente orgulhar-se de um de las Casas ou de um Francisco de Vitória, criadores do Direito dos Povos com base na doutrina cristã que prega a igualdade de todos os seres humanos aos olhos de Deus) têm algo de ridículo.

Mas o que eles denunciam é algo de sintomático, a saber, o carácter enviesado daquilo que alguns gostam de chamar História (e que não passa da voz dos vencedores) e que gostam muito de olhar para um Passado supostamente glorioso como compensação por um Presente que parece que os desmerece, em vez de ouvirem todas as vozes e usarem esses relatos para pensar um Futuro incerto em que nos arriscamos a repetir os erros do Passado porque o que conhecemos é apenas uma certa versão dele que nos afaga o ego...

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