A laicidade é a vacina contra as guerras religiosas – 1
Em França, o clero de várias religiões agita as vestes talares e envenena os media contra a laicidade. Acusam o PR de radicalizar o laicismo, como se a neutralidade pudesse radicalizar-se. O laicismo radical é uma impossibilidade, espécie de abstenção violenta. A condescendência de Mácron é que é criticável, e tem sofrido ameaças islâmicas.
A laicidade desagrada às religiões que querem viver à sombra
do Estado e interferir nas leis, e usam um artifício semântico para a
contestarem. Dizem que aceitam a laicidade, mas são contra o laicismo, como se
a primeira não fosse a mera aplicação da filosofia em que se baseia –, o
laicismo.
A França, aliás, toda a Europa, está a ser fustigada pela
evangelização de religiões que pretendem impor os seus credos e os seus modelos
tradicionais, éticos, gastronómicos e jurídicos, das crenças que transportam. Exigem
o comunitarismo para se defenderem do cosmopolitismo e combatem a laicidade
para preservarem a identidade, tantas vezes as tradições que discriminam a
mulher e impõem normas contra os Direitos Humanos.
Contrariamente às queixas do clero das várias religiões, a
liberdade religiosa existe em França, sem discriminações. As provocações pias,
com suspensão da circulação pública para as orações diárias, a exibição
identitária, a misoginia comunitarista e o desacato às leis da República não
merecem contemplação. Há ruas entupidas cinco vezes ao dia.
Continua a ser uma surpresa ver religiões que se odeiam
unidas no combate à laicidade, na incapacidade de abdicarem do proselitismo e
na determinação de imporem os seus dogmas e tradições à sociedade secular. Não
suportam a indiferença do Estado.
Os crimes sectários com motivações religiosas são sempre
atribuídos a minorias que se fanatizaram e nunca à obediência aos disparates do
seu Deus. O combate pela laicidade é visto como doença, acusado de fobia,
paradoxalmente mais por pessoas de esquerda do que de direita, estas
intrinsecamente mais xenófobas.
E não se pense que a tara atinge apenas os monoteísmos, que
os filhos de Abraão são os mais perversos nesta defesa assassina do seu Deus,
criado para a explicação por defeito dos medos, ansiedade e ignorância do
desconhecido, na Idade do Bronze.
A comunidade cristã da Índia sofreu este ano uma série de
ataques durante o Natal, com estátuas de Jesus Cristo a serem destruídas,
celebrações interrompidas e imagens do Pai Natal queimadas. Os cristãos dizem
não ser culpa do Governo, mas o Governo indiano mandou congelar contas das
Missionárias da Caridade. Estranha coincidência, onde as castas permanecem, a
desonra maior é o casamento de uma viúva e a violência contra os muçulmanos um
hábito que recrudesceu com o nacionalismo hindu.
Os budistas, contemplativos, que se apiedam dos animais
ínfimos, odeiam os Rohingya, minoria muçulmana apátrida de Mianmar, antiga
Birmânia, alvos de genocídio, e levam a crueldade a limites impensáveis, através
dos militares budistas que os monges apoiam.
George Sand, a notável escritora francesa que teve de se
esconder sob um pseudónimo masculino, lançou um dia esta imprecação: «Há
cinquenta anos que trago em mim uma maldição que hei de repetir até à hora derradeira,
maldita, maldita, três vezes maldita seja a intromissão do padre na família».
Cito de memória a frase, lida há sessenta anos, para a acompanhar na imprecação
à ingerência das religiões nos aparelhos de Estado.
Só a laicidade nos pode salvar do proselitismo assassino das
religiões. Não há liberdade religiosa sem democracia, nem democracias
confessionais. A Europa só pode defender o seu ethos civilizacional da demência
pia que a ameaça se for vigorosa na laicidade.
A violência religiosa crepita da Turquia ao Egito, do Iémen
à Nigéria, do Afeganistão à Arábia Saudita, da Índia ao Uganda, por todo o
mundo, enquanto os media dos países democráticos insistem que as religiões
promovem a paz. Talvez nos cemitérios!
Lembremo-nos que somos todos infiéis em relação aos deuses
dos outros. Os ateus só o são em relação a mais um, e eu não gosto de
decapitações, chicotadas e lapidações, que extasiam os deuses dos selvagens
devotos que as defendem e aplicam.
Ponte Europa / Sorumbático
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