A resistência e o recenseamento eleitoral – Crónica da ditadura

Há 47 anos (9-12-974) começou o recenseamento eleitoral, na sequência do 25 de Abril, para a realização das primeiras eleições livres em Portugal, após a longa noite fascista.

Foi o início da preparação para a eleição da Assembleia Constituinte, a que devemos a Constituição que, ainda hoje, é a lei das leis, valioso património democrático que alguns autocratas tentaram afrontar, sem a destruírem.

Recenseei-me pela primeira vez 1965, raro privilégio de um opositor à ditadura, porque era funcionário público e, na qualidade de Delegado Escolar da Lourinhã, era obrigado a inscrever os professores do concelho e regentes escolares.

No dia das eleições, com boletins previamente recebidos pelo correio, após a desistência da CDE, por falta de condições mínimas de liberdade, foi votada a lista única da UN.  Quatro amigos levámos os boletins inutilizados: Afonso Moura Guedes, que viria a ser deputado do PSD e líder parlamentar, com os nomes riscados um a um; eu, com vários arabescos sobre os nomes, o Manuel Gentil e o José Francisco Vacas, com um enorme X sobre os nomes. Dos 4 boletins inutilizados, o apuramento eleitoral, sem fiscalização, daria noventa e muitos por cento de votos favoráveis à UN e 3 nulos.

Hoje ninguém acredita que a União Nacional recusava divulgar o papel em que seriam impressos os nomes dos candidatos, e acusava a Oposição de querer papel igual, como se a tonalidade e/ou espessura não denunciasse os oposicionistas.

Essas eleições levaram ao cancelamento imediato do adiamento da incorporação militar que me tinha sido prorrogado há pouco, por razões académicas. Não me perdoaram que tivesse sido o delegado concelhio de Salgado Zenha.

Em 1969, requeri ao Presidente da Câmara da Lourinhã uma credencial para votar em Vila Cabral, localidade onde a farsa eleitoral iria ter lugar, a cerca de 60 km da sede do Batalhão onde eu estava integrado na guerra colonial. Teria o prazer de riscar os nomes dos fascistas. O silêncio foi a resposta ouvida em Moçambique.

Em 1971 ou 72, inscrevi-me pela segunda vez com êxito, e mal podia adivinhar que iria votar pela primeira em democracia sem necessidade de esperar pelo dia 9-12-74.    

Vale a pena contar a quem não viveu em ditadura o que foi a odisseia da ida à junta da Ameixoeira com vários militantes da CDE. Eu morava na Calçada do Carriche e essa era a respetiva Junta de Freguesia, onde se faziam os recenseamentos.

Fomos quatro amigos no meu Austin 1000 e entrámos na sede da Junta. Dissemos ao que íamos e a empregada chamou o Sr. Presidente que logo nos perguntou pelo papel do requerimento. Não levávamos. Fez-se longo silêncio, com olhos que enfrentavam os do presidente da Junta.

Cansado do silêncio, o homem virou-se para a funcionária e ordenou-lhe: “Dá aí, a estes cavalheiros, uma folha de papel a cada um, desse onde se fazem os requerimentos para a licença dos cães, e que os deixem aí”, e virou-nos as costas.

Lá requeremos a inscrição nos cadernos eleitorais. Com êxito, em papel azul de 25 linhas.

Os fascistas eram mesmo assim!

Coimbra, 9 de dezembro de 2021

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