Fé e senso-comum

Por

ONOFRE VARELA  - Vice-presidente da Associação Ateísta Portuguesa

Se o meu discurso for lido com radicalismo, dir-se-á que sou inimigo da fé e da crençaNão o sou, nem valeria a pena sê-lo… a crença é um acto intelectualfaz parte do cérebro que possuímos só somos crentes porque pensamos (e também somos ateus por isso mesmo!). Negar a crença seria tão estúpido como negar a importância do oxigénio para a manutenção da vida. 

Eu não tenho nada contra a crença e a fé. O que eu tenho é tudo contra o aproveitamento malicioso da fé (o que é coisa bem diferente) quando os crentes são assim mantidos com propósitos muitas vezes inconfessáveis… e que em alguns casos até pode constituir crime (os vigaristas aproveitam-se da “boa fé” de cada um… a IURD também!…). 

Perante os discursos de fé de qualquer religião ou seita, o bom senso aconselha duas atitudes: ou não lhe damos ouvidos, ou ouvimo-los como narrativas de fé aparentadas às fábulas. As fábulas têm importância e um lugar cativo no plano dos interesses intelectuais e culturais, mas não alcançam o valor que damos à realidade que a História conta e documenta… nem à Ciência, que estuda e comprova mediante experimentação e método. As fábulas são outra coisa! Cada matéria tem a sua prateleira própria e não se mistura com outras que lhe são estranhas. Fé, é apenas fé!… Cada um tem direito e legitimidade de ter fé no que quiser, e de cumprir os rituais que entender serem merecidos aos seus santos ou outras entidades que considere sagradas pela sua fé. 

A minha crítica ultrapassa a fé de cada um, para ir às causas que a constrói, alimenta e conduz à exploração das vítimas das várias formas de fé e de crenças, sempre em benefício de alguém… mas nunca do crente… embora ele creia que sim; por isso é crente!… O crente alimenta-se da fé que lhe dão para consumir, e há agentes da fé que usam uma linguagem beata e infantil como que se quem os ouve não tenha um raciocínio amadurecido e seja incapaz de interpretar o discurso. E também há quem alimente um fanatismo extremado e violento. Nenhum deles merece a minha consideração pela falta de racionalidade, humildade e humanidade que sobressai dos seus discursos e que sublinha as suas atitudes. Salvam-se “os outros”, aqueles que creem (ou não creem) com a racionalidade que a inteligência lhes confere, e interrogam-se. Por isso não se radicalizam. Podem ser crentes mas não engolem, sem mastigar muito bem, tudo quanto o guru lhe quer dar a comer. Muitos dos meus amigos e amigas crentes pertencem a este saudável grupo. 

O nosso Povo é católico e na sua generalidade é bom, hospitaleiro, pacífico e respeitador. Penso que estas características têm muito da educação cristã que recebemos desde o berço. O Cristianismo, na sua essência – expurgado do mito que lhe dá forma enquanto Religião teísta – tem positividade porque é universalista no respeito devido ao outro. E esta característica aproxima-o do Ateísmo… mesmo que católicos, e outros cristãos, se sintam escandalizados com tal aproximação. Retirando-lhe o nascimento divino, os milagres e a ressurreição, tudo quanto sobra é Ateísmo puro… e talvez, até, Comunismo!… 

A diversidade de sensibilidades faz com que haja quem repudie tudo quanto tresande a Igreja, e quem fuja de tudo quanto cheire a Ateísmo! Parece não haver meio termo… e todos nós sabemos, pelos adágios sapientais dos nossos ancestrais avós, que… “no meio é que está a virtude”. Virtude que é, tão só, a capacidade de criar diálogo, impedindo imposições, extremismos, zangas e ódios!… 

Porém não se deve pintar o discurso da virtude com um cinzentismo inócuo! Afinal, a virtude é o senso-comum… sendo que este nem sempre é verdadeiro, e nem tudo quanto o contradiz será falso! Não se pode confundir senso-comum com Razão: há verdades certíssimas e comprováveis (como o movimento da Terra à volta do Sol) em contra-ponto com preconceitos de fé que nem por estarem muito espalhados e façam parte do senso-comum de uma época ou elite, deixarão de ser erróneos (como acontecia com a defesa que a Igreja fazia da ideia de o Sol rodar à volta da Terra). Estes exemplos também querem dizer que o senso-comum é adquirido e cada tempo e sociedade tem o seu. E quando se trata do estudo científico, aquilo que faz o senso-comum pode, até, ser um empecilho ao estudo quando não se considera que a verdade procurada possa estar para lá do que o senso-comum delimita. Perguntem a Galileu!… 

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

OV

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