AO CABO DE CABO VERDE

Um poema soberbo de Ary dos Santos) - Pensando com raiva nos que negam o fascismo em Portugal e nos que consideram Trump, Bolsonaro, Erdogan ou Víctor Orbán, por exemplo, democratas diferentes.

 

Ao cabo de Cabo Verde

dobrado o cabo da guerra

quando o mar sabia a sede

e o sangue sabia a terra

acabou por ser mais forte

a esperança perseguida

porque aconteceu a morte

sem que se acabasse a vida.

 

Ao cabo de Cabo Verde

no campo do Tarrafal

é que o futuro se ergue

verde-rubro Portugal

é que o passado se perde

na tumba colonial,

ao cabo de Cabo Verde

não morreu o ideal.

 

Entre o chicote e a malária

entre a fome e as bilioses

os mártires da classe operária

recuperam suas vozes.

E vêm dizer aqui

do cabo de Cabo Verde

que não morreram ali

porque a esperança não se perde.

 

Bento Gonçalves torneiro

ainda trabalhas o ferro

deste povo verdadeiro

sem a ferrugem do erro.

 

Caldeira de nome Alfredo

fervilham no teu caixão

contra o ódio e contra o medo

gérmens de trigo e de pão.

 

E tu também Araújo

e tu também Castelhano

e também cada marujo

que morreu a todo o pano.

 

Todos vivos! Todos nossos!

vinte trinta cem ou mil

nenhum de vós é só ossos

sois todos cravos de Abril!

 

No campo do Tarrafal

no sítio da frigideira

hasteava Portugal

a sua maior bandeira.

 

Bandeira feita em segredo

com as agulhas das dores

pois o tempo do degredo

mudava o sentido ás cores:

o verde de Cabo Verde

o chão da reforma agrária

e o Sol vermelho esta sede

duma água proletária.

 

Do cabo de Cabo Verde

chegam tão vivos os mortos

que um monumento se ergue

para cama dos seus corpos.

Pois se o sono é como o vento

que motiva um golpe de asa

é a vida o monumento

dos que voltaram a casa.

José Carlos Ary dos Santos


(poema feito quando da trasladação para Portugal dos restos mortais dos 32 resistentes assassinados no Tarrafal) – Imagem: União de Resistentes Antifascistas Portugueses

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