Marcelo Rebelo de Sousa – Um perfil escondido
Depois da agradável surpresa de um PR inteligente, culto e simpático, sucedendo a dez anos de um empedernido e azedo salazarista, Marcelo começou a arruinar, no segundo mandato, a imagem do primeiro. Já gastou o cabedal de simpatia que mereceu.
A irrefreável tendência para comentar tudo, do futebol à
política, da canoagem à poesia, das vacinas à economia, dos incêndios às
inundações, das decisões políticas aos autores, dos OE à conduta das oposições,
só se contém perante eventuais fugas de informação da sua Casa Militar, na
decisão conjunta do PM e PR para a nomeação do alm. Gouveia e Melo para CEMA, e
notícias de pedofilia eclesiástica.
Ao contrário dos beija-mãos ao Papa e aos bispos, exibe uma
postura arrogante com os políticos, quiçá ressabiado da derrota na Câmara de
Lisboa, do epíteto de Balsemão e das acusações deste, de ser delator das
decisões dos Conselhos de Ministros para os media, mestre na intriga e na
dissimulação, nas pretensas idas à casa de banho.
O homem que chamou Lelé da Cuca ao dono do semanário que o
nomeou diretor, para se desculpar com um teste aos revisores e lhe revelar,
depois, que o considerava como pai, é quem escreveu a Marcelo Caetano o
elogiá-lo: “Como Vossa Excelência apontou, Aveiro representou, um pouco mais do
que seria legítimo esperar, uma expressão política da posição do PC e o
esbatimento das veleidades «soaristas»1.
É ainda o mesmo que na entrevista telefónica à jornalista
Alexandra Tavares-Teles, na revista Notícias Magazine, recordando, ‘como viveu
o 25 de Abril’, refere a resposta que deu ao pai, influente ministro da
ditadura, depois de este lhe ter dito que Marcelo Caetano lhe garantira que
vinham a caminho de Lisboa tropas fiéis ao governo: «Disse-lhe o que sabia.
‘Não, pai, não vêm forças nenhumas, não pensem nisso, isto está a correr
rapidamente. Acabou.’». E, quando a jornalista lhe perguntou: «De onde vinha
essa certeza?», respondeu com aquela candura que usa na intriga e nos afetos:
- O António Reis [militante e dirigente político ligado ao
PS] tinha-me avisado da proximidade do 25 de Abril com alguma precisão. E
embora o meu pai fosse dos membros do governo teoricamente mais bem informados,
percebi, naquele momento, que, de facto, estava muito pouco informado. Penso
que ele terá transmitido a informação a Marcello Caetano e que este terá
respondido: “Esse Marcelo Nuno só traz más notícias. Isso são coisas do
contra». 2
Não sei o que mais admirar, se a insensatez do jovem
político António Reis, a devoção filial de Marcelo ao ministro fascista, a
denúncia da Revolução ao Governo ou a traição à (in)confidência do amigo.
Aliás, era interessante saber quando foi «aquele momento», o da indiscrição de
António Reis a Marcelo Nuno e o da delação ao governo, através do [pai]
ministro de Caetano. Felizmente, Marcelo Caetano não o levava a sério.
Marcelo não é só o hipócrita que, na apoteose da fé, deixou
numa cama o sacramento do matrimónio indissolúvel e levou para outra as
hormonas e o adultério3. Foi também, e é, o artífice das soluções mais
reacionárias que a direita democrática tomou em Portugal.
Foi contra o SNS, lutando depois contra a universalidade,
alegando o seu caso, injusto, pois podia e devia pagar a saúde, e tinha direito
à gratuitidade. Com Guterres pensou o referendo que atrasou a legislação que
aprovou a despenalização da IVG. Este Marcelo, que lava mais branco o passado
do que qualquer detergente as nódoas, é o mesmo cujos preconceitos pios
preferiam a morte de mulheres cuja vida perigasse com a gravidez, a gestação
obrigatória das vítimas de violação e das grávidas de um feto teratogénico.
Esteve sempre, nos costumes, do lado mais reacionário, tal
como na política. Veja-se:
Marcelo Rebelo de Sousa, José Miguel Júdice, Santana Lopes,
Manuel Durão Barroso e António Pinto Leite surgiram no início de 1984,
organizados, para fazerem regressar ao poder, por via democrática, a velha
política, sob o pseudónimo de “Nova Esperança”, e foram decisivos em dois
congressos do PSD, em 1984 [Braga] derrotando Mota Amaral com Mota Pinto e,
especialmente, em 1985 [Figueira da Foz], na improvável ascensão à liderança
partidária do obscuro salazarista Cavaco Silva, derrotando João Salgueiro.
Marcelo não foi apenas líder do PSD, foi sempre o defensor
das posições que são hoje minoritárias na sociedade portuguesa, por mais
anestesiada e aturdida que se encontre.
Depois de dez anos de Cavaco, a reintegrar pides e a gozar
os pingues fundos europeus conseguidos com a adesão à UE por Mário Soares,
podia pensar-se que Marcelo teria o remorso cristão e democrático, e reincidiu
na vivenda de Ricardo Salgado, juntando ao casal do anfitrião, o seu, o de
Durão Barroso e o de Cavaco, para preparar a primeira candidatura vitoriosa de
Cavaco a PR.
Nunca ninguém o confrontou sobre a posição que tomou quando
Eanes defrontou o gen. Soares Carneiro, ex-diretor do presídio colonial de S.
Nicolau e que, após a derrota, em afronta aos militares de Abril, Cavaco
reintegrou no ativo e promoveu a CEMGFA. Foi essa afronta à democracia e à
legalidade que levou o PR Marcelo a atribuir a Cavaco o mais elevado grau da
Ordem da Liberdade? Foi uma ofensa aos mártires da ditadura.
Marcelo, que aceitou ser presidente da Fundação Casa de
Bragança, saberia que o cargo era incompatível com a ética republicana e a presidência
da República? Pode agradar à populaça, mas não serve a democracia.
Tenho por este PR o respeito mínimo a que o Código Penal me
obriga; julgo-o capaz de quase tudo e com uma agenda perigosa. Vejo nele um
perturbador da governabilidade e das relações interpartidárias, por obsessão
dele e não por desconfiança minha.
É preciso avisar a malta! É urgente impedir a
presidencialização do regime parlamentar através do PR que se imiscui na
exclusiva responsabilidade do Governo pela condução política do País e na do PM
na condução do Governo.
A CRP obriga o PR a respeitá-la e a defendê-la, o que não
faz. O que a CRP não obriga é um cidadão a acreditar no PR, na honorabilidade
da sua agenda privada, na brancura do seu passado, na honradez da sua palavra
ou na isenção dos seus julgamentos.
Às vezes tenho a vaga impressão, talvez injusta, de que o
Palácio de Belém pode ser, à semelhança do que acontece no Brasil, no Palácio
do Planalto, habitado por mesquinhos inquilinos que são incompatíveis com a
verdade, independentemente do sufrágio que lhes abre as portas.
1 (in «Cartas Particulares a Marcello Caetano», organização
e seleção de José Freire Antunes, vol. 2, Lisboa, 1985, p. 353 via Abril de
Novo Magazine)
2 (In Notícias Magazine, 22 de abril de 2018, pág. 20, 3.ª
coluna).
3 Vocábulo da linguagem pia.
Ponte Europa / Sorumbático
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