Luandino Vieira, meu dileto presidiário

 

As voltas que o mundo dá! Nascido ali, em Vila Nova de Ourém, foste para Angola aos três anos e aprendeste a amar aquele solo, a respirar o ar de África, a sentir naquele País a Pátria que é tua na língua que é nossa.

Desde ontem que não me sais do pensamento. De quem me havia de lembrar! Recordo o barulho que causaste quando te atribuíram, em 1965, o «Grande Prémio de Novelística» da Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE*) pelo teu livro Luuanda. Tens andado no meu devocionário.

Quem se lembra hoje de que estavas preso no Tarrafal, quando a SPE, a cuja formação estiveram ligados Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro, sendo presidente um honrado académico e ilustre escritor, Jacinto Prado Coelho, te premiou honrosamente em 1965?

Demoraste a saber da distinção, as notícias chegavam tarde ao Tarrafal. Desconhecidos, era essa a designação dos provocadores da Pide e da Legião, destruíram selvaticamente a sede da SPE, o ministro Galvão Teles extinguiu a SPE e a Pide prendeu os membros do júri: Alexandre Pinheiro Torres, Manuel da Fonseca e Augusto Abelaira.

Podia lá aceitar a ditadura que fosses patriota, que combatesses pelo MPLA para libertar a tua Pátria do colonialismo?! O Tarrafal era o lugar que te cabia e a prisão o destino de escritores que te consagraram.

Há anos tive o prazer de almoçar contigo, com um grupo de amigos que te trouxeram a degustar leitão, à Anadia. O Jaime Couto Ferreira, meu velho condiscípulo do liceu da Guarda, professor de História da Economia na Faculdade de Economia, em Coimbra, notável pintor, pediu-me para te saudar. Há privilégios que nascem dos afetos.

Cumprimentei-te e dirigi-te breves palavras de apreço, sem ignorar o prémio da SPE. Nunca esqueci a tua resposta, elogiaste o júri pela dupla coragem de te dar o prémio e a um livro que o não merecia.

Não foste justo para ti nem para o júri, mas é assim a tua coragem feita de modéstia e de desapego. Em 2006 recusaste o Prémio Camões, o maior galardão literário português, com a desculpa de que eras um escritor morto, não publicavas. Havias de publicar ainda outros livros e, queiras ou não, és um novelista, poeta e contista de grande mérito.

O prémio não o pudeste evitar, apenas recusaste receber o seu valor pecuniário.

Nos dias que correm não podia esquecer-te. Do alto dos teus 87 anos deves sorrir com amargura às notícias de um mundo onde se lavam e louvam carcereiros e se esquecem os encarcerados. Um escritor angolano, militante ativo contra o colonialismo, que não se conformava com a vida nos musseques e pusera em contraste a pobreza dos negros e o bem-estar dos brancos em Angola, tinha de ser encarcerado. E por muitos ano

Julgo que estás no Minho, eremita e agricultor, alheio ao ruído mediático, indiferente ao esquecimento de obreiro do nascimento de Angola e destacado escritor angolano.

Para mim és a notícia, a abertura dos telejornais da minha consciência, o nome que mais recordo, o escritor a quem deixo neste meu quase-diário o comovido e solidário abraço nestes dias de mentira em que a lavandaria noticiosa branqueia imagens e esquece quem fez da coragem e coerência uma vida sofrida.

Boa noite, Luandino.

Coimbra, 24 de outubro de 2022   

*SPE (04-07-1956/21-05-1965)

Comentários

acvmoz disse…
Caro Carlos Esperança,

Venho agradecer-lhe, comovido, o seu texto que lembra o grande Luandino Vieira, símbolo dos encarcerados do Tarrafal, no dia em que se celebra e branqueia desavergonhadamente o homem que o reabriu e a quem nunca tal devia ser perdoado porque ele, sim, sabia o que fazia.
R. disse…
Muito bem lembrado, ele e o esplêndido «Luuanda».

Uma nota: prémio não da SPA, mas da SPE - Sociedade Portuguesa de Escritores, fundada por Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro, saqueada e encerrada após o prémio atribuído a Luandino. Em 1973, salvo erro, nasce a actual APE-Associação Portuguesa de Escritores, sucessora daquela.
méri disse…
Muito bem! Aplaudo de pé
Caro acvmoz:

Foi exatamente pelo branqueamento de Adriano Moreira, que reabriu o Tarrafal, onde Luandino esteve longos anos, assim como outro presídio em Angola, e que considerava Salazar o maior estadista português, que eu escrevi este texto. Custou-me muito ver Manuel Alegre a elogiá-lo só porque morreu.
R:

Tem toda a razão. Era a Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE) e não de Autores que nunca foi extinta. Corrigi no texto do FB, mas esqueci-me de o fazer neste blogue. Obrigado. Já corrigi.

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