Cravos Vermelhos e lágrimas
Texto de Onofre Varela
Vivemos o cinquentenário da Revolução de Abril. Cinquenta anos já são mais oito do que os 42 em que fomos governados pela ditadura de Oliveira Salazar continuada por Marcelo Caetano (1932-1974). Há quem não se lembre do que era Portugal antes do 25 de Abril de 1974 simplesmente porque era criança ou nem sequer tinha nascido. Ler nos livros escolares a narrativa dos factos políticos, sociais e económicos que fazem a nossa História, não é o mesmo que vivê-los.
Mas também há “quem não se lembre” porque não quer lembrar, ou deseja esquecer, numa atitude política, no mínimo, desonesta, por não considerar a História, nem a comunidade no seu todo; vendo, apenas, os seus interesses políticos, económicos ou sociais particulares e egoístas, desconsiderando a existência dos seus semelhantes.
Se tal atitude não for desonesta… então poderá ser desatenção ou ignorância. Não sei qual será o melhor epíteto para designar a qualidade de “quem não se lembra”… mas eu conheço mais um termo… que não vou dizer aqui!
No tempo em que Durão Barroso era primeiro-ministro fui contactado por uma autarquia de Vila Nova de Gaia para participar nas comemorações do 25 de Abril fazendo caricaturas a quem o desejasse. Observei que o autarca distribuía cravos brancos, dizendo que representavam “a pureza e a Paz”… contrariando o símbolo da data, que é o Cravo Vermelho! Pareceu-me uma atitude serôdia, reaccionária e contra a Democracia conquistada pelos militares de Abril, que aquele autarca fingia estar a comemorar… mas só fingia… não estava!…
A referência a Durão Barroso que aqui faço acontece porque, na mesma ocasião, Barroso lembrou o 25 de Abril com um cartaz referindo a “Evolução de Abril”! Aquilo não era gralha… não caiu a letra R da palavra Revolução… a ideia era dizer que os tempos eram outros, na “evolução” dos acontecimentos políticos depois de 1974, na tentativa de apagar da memória a Revolução dos Cravos… que eram, e são, Vermelhos (a paz e a pureza dos cravos brancos, só era tanga!…).
Na sequência desta prosa não posso deixar de lembrar o senhor Augusto, artista pintor da construção civil. Quando eu era jovem de 20 anos (início dos anos 1960) os meus pais tinham uma mercearia e adega em Rio Tinto (Gondomar). Havia dias em que o senhor Augusto (que contaria uma idade de cerca de 80 anos) só saía da adega quando terminasse o programa de televisão. A emissão televisiva, a preto e branco, terminava por volta da meia-noite com a transmissão do Hino Nacional e a imagem ondulante da bandeira da República. As portas da adega já estavam fechadas desde as 10 horas da noite, hora legal para encerrar o estabelecimento. Mas o senhor Augusto conservava-se sentado num mocho esperando o fim da emissão, e os meus pais nada lhe diziam, deixando-o na sua espera costumeira, que respeitavam.
Quando era tocado o Hino e surgia a bandeira ondulante, mestre Augusto levantava-se e, em sentido, olhava a bandeira, escutava o hino e chorava em silêncio. Terminado o som e finda a imagem, limpava os olhos com o seu lenço tabaqueiro, despedia-se com um “boa noute” e as suas pernas trôpegas levavam-no a casa.
Só percebi a atitude do senhor Augusto após o 25 de Abril de 1974.
O senhor Augusto nasceu e cresceu na Monarquia, viveu a primeira República e assistiu ao fim do sonho republicano com a ascensão de Salazar no Poder. A bandeira da República era para si um “Símbolo Sagrado da Liberdade” que o ditador destruiu!
Dias depois do 25 de Abril (tinha eu 30 anos), dei comigo a participar num comício de Esquerda, no Palácio de Cristal, no Porto, em cujo final se ergueu a Bandeira Portuguesa e se cantou o Hino Nacional. E eu chorei!… Só então percebi o sentimento do senhor Augusto…
(O autor escreve sem obedecer ao último Acordo Ortográfico)
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