Miguel Sousa Tavares - Uma opinião corajosa
Mil e um dias de insensatez - (Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 22/11/2024)
E agora, porque a história é tantas vezes irónica, a nossa esperança de podermos ao menos continuar a viver um presente despojado do terror nuclear reside nas mãos de outro americano, não de esquerda nem razoável, mas de extrema-direita e furiosamente perigoso.
Imagine que Portugal e Marrocos estão em guerra e que a Espanha, oficialmente, não participa nessa guerra. Agora imagine que, continuando oficialmente de fora, a Espanha fornecia a Marrocos mísseis para serem disparados contra território português, fabricados em Espanha, operados ou assistidos por militares espanhóis e guiados até aos alvos por sistemas de localização e orientação espanhóis. Ainda acharia que a Espanha estava fora da guerra? Foi isso que Joe Biden acabou de fazer, autorizando a Ucrânia a utilizar livremente contra território russo os mísseis Atacms que já lhe tinha fornecido e cujo uso estava até aqui limitado ao território da Ucrânia.
A dois meses de abandonar o cargo, sabendo que Trump procederá a uma alteração, porventura radical, da posição dos EUA face à guerra da Ucrânia — e que essa foi, aliás, uma das razões da sua vitória eleitoral —, Biden decidiu declarar guerra à Rússia e, por arrasto, envolver a Europa e a NATO sem os consultar, colocando o mundo na iminência de uma possível terceira guerra mundial, nuclear desta vez. A qual acontecerá ou não conforme a decisão e a frieza do “louco” Vladimir Putin.
A decisão de Biden faz-me lembrar a do Governo de transição de Passos Coelho, privatizando a TAP no seu último dia de governo, contra a vontade conhecida de quem lhe ia suceder. Também Joe Biden aproveitou a fase de transição de poder para tomar uma decisão que sabe contrária à vontade do seu sucessor e à da maioria dos americanos. E, significativamente, só o fez agora e não antes de 5 de Novembro para não prejudicar as hipóteses eleitorais de Kamala Harris.
Poucas horas tinham passado desde que Biden cedera finalmente aos incessantes pedidos de Zelensky para utilizar os ATACMS e já Kiev os começara a disparar contra terras russas, exactamente ao milésimo dia de guerra. Em Moscovo, Putin respondeu conforme avisara há vários meses que faria numa situação destas: alterando a doutrina nuclear russa para passar a considerar que se a Rússia fosse atacada por uma potência não nuclear, mas apoiada por uma potência nuclear, Moscovo considerar-se-ia atacada por ambos — como o declarariam também os EUA, a Inglaterra, a França ou Israel. Sem razão, portanto, para nenhuma surpresa, os nossos sábios dirigentes ocidentais reagiram invertendo despudoradamente a lógica da situação. Em Bruxelas, Josep Borrel declarou que Putin tinha escolhido a data dos mil dias para “nova ameaça nuclear” — como se a decisão dele não fosse consequência do ataque de Kiev. Em Londres e Paris, vendeu-se à opinião pública e à imprensa submissa a versão simplificada de que a única coisa de novo que tinha acontecido era a “retórica irresponsável” de Putin. Ao mesmo tempo que, como sempre seguindo os passos do amigo americano, a Inglaterra já prepara também a autorização para que Kiev utilize os seus Storm Shadow de longo alcance dentro das fronteiras russas, a França prepara o mesmo em relação aos seus SCALP e as pressões vão tornar-se insuportáveis sobre o chanceler Scholz para que os Taurus alemães entrem também na festa. Agora que a “corajosa decisão” de Joe Biden (Macron dixit) comprometeu os Estados Unidos até ao osso, a Europa segue atrás, aliviada e feliz, e que se lixe a tão invocada autonomia da política externa e de defesa europeia. Mas é aqui, na Europa, e não nos Estados Unidos — nos países escandinavos e nos países bálticos — que já se distribuem instruções à população sobre o que fazer em caso de uma guerra nuclear, um pesadelo próximo jamais vivido em quase 50 anos de Guerra Fria, mesmo com parceiros tão sinistros como Estaline ou Brejnev sentados no Kremlin. Ou seja, e tentemos ser factuais: o Presidente dos Estados Unidos, à beira de deixar de o ser, tomou uma decisão que já sabia de antemão que teria esta resposta de Moscovo — e por isso, hesitou tanto em tomá-la. Essa decisão, rapidamente secundada pelas potências nucleares europeias, foi assim assumida com a consciência plena dos riscos imensos que implicava. E o irresponsável é Putin?
Dizem os sábios ocidentais que o mais provável é Putin não passar das ameaças — o que, na lógica dos sábios, equivale a esperar que um “assassino”, como Biden lhe chamou, um “irresponsável”, guarde a pior arma no bolso enquanto está a ser atacado. E reforçam a sua esperança numa paz planetária mantida apesar da provocação final do lado de cá na análise que fazem de que os ATACMS não ajudarão a Ucrânia a ganhar a guerra nem mudarão substancialmente as condições no terreno, apenas ajudarão Zelensky a negociar um acordo de paz com a Rússia em condições menos desvantajosas. Extraordinário argumento, se pensarmos que só após a vitória de Trump e quase mil dias de guerra se ouviu falar de negociações de paz, pois que até então a posição unânime da NATO era a de rejeição de quaisquer negociações e a manutenção do apoio a Kiev “até à vitória” e “por quanto tempo necessário”. Isto mesmo foi dito recentemente por Kaja Kallas, a futura comissária para a Política Externa da UE e, por razões familiares, inimiga fanática de Moscovo: não há nada para negociar, apenas a continuação da guerra até ao último míssil a enviar e até ao último ucraniano vivo — uma posição clara, ao contrário do que preconizou para Israel, onde apesar dos cem mortos por dia em Gaza, a comissária entende que a situação é muito confusa e a UE não tem que se imiscuir. Isto mesmo também era repetido até à exaustão e até ao 5 de Novembro por Zelensky, que levado ao engano pelas sondagens, ainda acreditava na derrota de Trump e andava a vender em todo o lado, não um plano de paz ou uma proposta de negociações, mas um “plano de vitória”, o qual passava justamente pela autorização de usar os mísseis dentro da Rússia. Mas a partir de anteontem, quando o primeiro ATACM atravessou a fronteira para leste, Zelensky e os seus proxis, de novo eufóricos, já falam outra vez da vitória total. Pobres ignorantes, não conhecem a história da Rússia: daqui a uns tempos, depois dos sistemas antiaéreos, dos conselheiros militares, dos tanques, dos aviões e das várias gerações de mísseis, depois dos milhares de milhões de euros já dados à Ucrânia para a continuação da guerra, sem com isso se alcançar a tal vitória final, Zelensky estará a exigir a arma que resta — a bomba nuclear.
Há mais de mil dias, meses antes de a guerra começar, que digo o mesmo: esta guerra era perfeitamente evitável se tivesse havido vontade para isso. A Ucrânia queria a segurança de saber que a Rússia não a invadiria e a Rússia queria garantias de que a Ucrânia não aderiria à NATO, fechando-lhe o cerco pelo sul e podendo, como agora, utilizar o seu território para, com armas da NATO, a atacar. Mil dias depois, ambos os lados perderam: a Ucrânia foi invadida pela Rússia e a Rússia é atacada pela NATO a partir da Ucrânia e está mais cercada do que nunca. Sem falar, claro, das centenas de milhares de mortos de ambos os lados e da devastação da Ucrânia. Tudo isto teria sido facilmente evitado desde o início ou acabado pouco depois se Joe Biden e Boris Johnson não tivessem boicotado os acordos de paz já prestes a serem firmados. Mas, sem conceder na ilegitimidade da invasão russa, eternamente seguirei convencido de que os Estados Unidos e a NATO não só nada fizeram para evitar a guerra como até a desejaram. Mais do que quaisquer manobras militares, a guerra da Ucrânia deu aos Estados Unidos e à NATO a possibilidade única de testar as suas capacidades de equipamento e estratégia militar em cenário real; de perceber as forças ou debilidades militares da Rússia; de a desgastar e enfraquecer na hipótese de um futuro conflito com a China, onde a Rússia seria sua aliada; de ressuscitar uma NATO declarada em estado de “morte cerebral” por Macron, e em nome da defesa dos valores das “democracias liberais” ou agitando o fantasma, criado do nada, da continuação da ofensiva militar russa até às praias da Normandia; de possibilitar lucros escabrosos à indústria militar americana; de assentar um golpe fulminante na economia europeia, proibindo-lhe as relações comerciais com a Rússia, e impondo-lhe, a bem ou a mal — nem que fosse pela sabotagem dos gasodutos russos — o corte de fornecimento de energia russa à Europa, substituindo-a, a preços bem mais caros, pelo fornecimento do gás liquefeito americano, a bem da balança comercial americana e da concorrência industrial com a Europa.
E agora, porque a história é tantas vezes irónica, a nossa esperança de podermos ao menos continuar a viver um presente despojado do terror nuclear reside nas mãos de outro americano, não de esquerda nem razoável, mas de extrema-direita e furiosamente perigoso. Esperamos que Donald Trump nos salve da guerra e que depois o bando de delinquentes de que é formado o seu governo nos arraste então para outros abismos, mas menos imediatamente mortais. Como disse Macbeth, “life is a tale told by an idiot”.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
Comentários
Trata-se de uma posição que carece de argumentos consistentes e bem fundamentados sobre a NATO e o sistema de defesa da Europa. Para entender o sistema de defesa da Europa Ocidental, será bom lembrar que os países do antigo espaço de influência soviética (Pacto de Varsóvia) que aderiram à NATO no final dos anos 90 e já neste século, poderiam ter soberanamente optado por uma aliança com a Rússia.
Com efeito, Moscovo havia criado uma estrutura militar paralela à NATO, em 1992, conhecida pelas iniciais CSTO - Organização do Tratado de Segurança Colectiva. Ora, na parte europeia, apenas a Bielorrússia e a Arménia fizeram essa opção, aos quais se juntaram apenas três países da Ásia Central, as antigas repúblicas soviéticas do Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão.
Os outros países, e são vários, ou ficaram de fora (Suécia, Finlândia que só recentemente aderiram abandonando a posição de neutralidade devido precisamente à invasão russa da Ucrânia) ou preferiram a Aliança Atlântica, pelo que o chamado alargamento da NATO foi, na realidade, o resultado de uma série de decisões nacionais soberanas.
Que autoridade, têm aqueles que são contrários ao alargamento da NATO para dizer aos povos polaco, letão, romeno ou búlgaro, que não deveriam ter feito a escolha que fizeram?
A verdade é que estes países com fronteiras encostadas à Rússia (países Bálticos, Polónia, Eslováquia, Hungria, Roménia, Bulgária), reconheceram que precisavam de uma defesa sólida, não tendo alternativa para essa defesa vital da sua soberania (como Estados independentes e democráticos) que não fosse a adesão à NATO, à qual entretanto aderiram e de que fazem parte integrante. Tal foi fundamental para garantir a consolidação dos regimes pluralistas democráticos destas jovens democracias europeias e resolveu o dilema de segurança destes países face ao vizinho russo.
Outros países como a Geórgia e a Ucrânia porque não conseguiram aderir à NATO – é bom lembrar que na Cimeira da NATO de Bucareste de 2008, a Geórgia e a Ucrânia que tinham manifestado a intenção de aderir à NATO viram os seus pedidos recusados – voltaram a ser vítimas do imperialismo russo e de agressões à sua integralidade territorial, a Geórgia com as independência das autoproclamadas repúblicas da Ossétia do Sul e da Abecásia, e a Ucrânia com as das regiões separatistas de Donetsk e Luganssk e a anexação da Crimeia em 2014, e agora em 2022 com a invasão da própria Ucrânia.
Como dizem os polacos, má sorte ter calhado neste lugar (fronteira da Rússia). "Trocava a minha gloriosa história por uma melhor geografia", diz um ditado polaco. É mesmo isso o que está em causa.
(continua …)
Por último, e ainda sobre as relações NATO/Rússia, convém regressar à história do fim da Guerra Fria e ao processo de alargamento da NATO, que foi feito em permanente articulação com Moscovo, conforme o “Acto Fundador” sobre Relações Mútuas, Cooperação e Segurança assinado por Boris Yeltsin, em Paris (1997) que incluiu a criação de um Conselho NATO-Rússia, que se manteve em funcionamento até recentemente e onde todas as questões de segurança foram debatidas.
A alegação russa de que em 1990 os responsáveis da NATO se comprometeram de que esta não se alargaria para a Europa Central e Oriental, e não construiria infraestruturas militares junto das fronteiras russas, nem destacaria tropas para essas fronteiras, são falsas. Com efeito, no Acto Fundador, a NATO reiterou que “no actual ambiente de segurança e no ambiente previsível no futuro, a Aliança levará a cabo as suas missões de defesa colectiva e outras, garantindo a necessária interoperabilidade, integração e capacidade de reforço, em vez do destacamento adicional de forças de combate permanentes substanciais. Neste contexto, é possível que haja reforço, quando necessário, em casos de defesa contra uma ameaça de agressão e missões de apoio à paz coerentes com a Carta das Nações Unidas e com os princípios governativos da OSCE, bem como para exercícios em consonância com o Tratado CFE (Tratado sobre Forças Convencionais na Europa)”, em todos os países que no âmbito da política de “porta aberta” e de livre escolha aderiram à Aliança.
Mesmo antes da invasão da Ucrânia, o único sinal das forças aliadas nos novos países membros eram os caças da NATO utilizados nos Estados bálticos em missões de policiamento aéreo, forças defensivas mínimas que não podem ser descritas como forças de combate substanciais no contexto do Acto Fundador. Mesmo depois da invasão, a NATO tem-se limitado a tomar medidas para apoiar as defesas dos seus membros da Europa oriental, medidas que também estão em consonância com o Acto Fundador. Enfim, o Acto Fundador também declara que “a Rússia exercerá uma contenção semelhante no destacamento das suas forças convencionais na Europa”, pelo que a agressão da Rússia contra a Ucrânia é uma violação flagrante desse compromisso, tal como a suspensão unilateral do cumprimento do Tratado CFE, sustentada pelo revisionismo militarizado de Vladimir Putin.
“A Ucrânia é uma parte inalienável da nossa história, cultural e espaço espiritual”, afirmou Putin, dois dias antes da invasão, ideia que é baseada numa narrativa ideológica-religiosa fundamentada na ortodoxia russa (do patriarca Cirilo e de ultranacionalistas russos) de que “o Mundo Russo é onde quer que haja falantes de russo, é onde quer que haja uma igreja russa, não reconhecendo as fronteiras políticas existentes” e na “Terceira Roma” em que Moscovo assume ser o centro da Igreja Ortodoxa, ambos vendo em Kiev a “jóia da coroa” perdida, berço político e religioso da nação russa: a “Rússia de Kiev”, reino do príncipe Vladimir (Vladimiro para os ucranianos) soberano que, segundo eles, se terá unido aos habitantes num baptismo colectivo (séc. IX) assinalando assim o nascimento do cristianismo eslavo e da ortodoxia russa.
Trata-se de um revisionismo histórico, na medida em que historicamente o “Rus de Kiev” (“Rus” tem raiz no norueguês antigo “roõs ou roths” referindo-se a “remadores”, isto é “varegos suecos” e que ainda hoje existe no finlandês e no estoniano como “Ruotsi e Rootsi” para designar a Suécia), era um reino pertencente a uma confederação medieval (sécs. IX-XIII) criada a partir da conquista de territórios localizados nas modernas Ucrânia, Bielorrússia e uma minoria da Rússia, por tribos eslavas e finlandesas, não existindo assim uma linha de continuidade a partir dessa federação medieval (impropriamente designada por “Rússia de Kiev”) até ao Estado russo. O Grão-Ducado de Moscovo ou Moscóvia, a entidade política antecessora dos czares e do Império Russo (que deram origem à Rússia actual) situa-se entre os princípios do séc. XIV até ao princípio do séc. XVIII, muito após o colapso do “Rus de Kiev” e dos reinos da confederação pela invasão mongol.
E não existindo igualmente uma linha contínua a ser traçada dessa confederação até ao actual Estado ucraniano, porque ao longo dos séculos, a área que é hoje a Ucrânia foi sucessivamente, conquistada, ocupada e controlada pelo Império Mongol, mais tarde pela Comunidade Polaco-Lituana, pelo Império Austro-Húngaro e pelo Império Russo, a verdade é que a Ucrânia tem maior legitimidade histórica para reivindicar a sua descendência directa do “Rus de Kiev”.
No fundo, este revisionismo histórico permite a Putin, comparar-se com Pedro o Grande e a querer restaurar o império russo (esquecendo-se que enquanto Pedro o Grande fez da Rússia um “Rússia Europeia”, Putin ao contrário, parece ter como desígnio uma ruptura com a Europa), e devolver a Rússia a esses velhos tempos da Rússia imperial, de quem acha que a queda da URSS foi uma tragédia. O conflito que hoje vivemos na Ucrânia é a consequência dessa vertente saudosista, totalitária, em busca de um passado imperial glorioso e do restabelecimento do império russo-soviético.
É preciso ser claro: invasão criminosa da Ucrânia – país europeu independente que tem o direito de definir os seus próprios caminhos, de aderir à democracia e ao modo de vida europeu ocidental – feita pela Rússia, não tem justificação, por mais razões que sejam invocadas e por mais acusações que se façam ao imperialismo americano e críticas que sejam dirigidas à UE e à NATO.