Cinquentenário da morte de Salazar – A andropausa da ditadura e o caruncho

Em 3 de agosto de1968, um inseto coleóptero atingiu a apoteose na cadeira que ajudou a desconjuntar. O caruncho foi o artífice da inestimável tarefa que marcou o início do fim do ditador, que vegetou ainda até ao dia 27 de julho de 1970. Faz hoje 50 anos.

Por mérito próprio ou ansiedade de um povo, o caruncho tornou-se o celebrado autor da queda da cadeira que arrastou o mais longevo ditador europeu do século XX. Ignora-se o número de anos e de insetos cuja vocação xilófaga os conservou no interior da cadeira onde o biltre repousava, no Forte de Santo António da Barra, em São João do Estoril, e, prostrado aos pés, um calista lhe tratava regularmente os calos.

Nesse dia, o sádico ditador tornou-se um decadente ator de comédia. Presidiu a supostos Conselhos de Ministros onde os cúmplices do seu último Governo iam como figurantes. Lentamente, foi-se esquecendo de quem era e dos crimes de que foi responsável.

As memórias do cruel massacre de Batepá, em S. Tomé; da pedofilia dos ministros que não permitiu julgar; das prisões, degredos, perseguições, demissões e assassínios de adversários; da tortura de presos e da tragédia da guerra colonial, foram-se esvaindo de um corpo já sem cérebro do tirano sem princípios.

A Pide, a Legião, a GNR e os Tribunais Plenários continuavam a funcionar; nas prisões, a tortura mantinha-se; nos jornais, a censura prévia permanecia; nas prisões políticas, os espancamentos, a tortura do sono, a estátua, as queimadelas de cigarros e eletrochoques não pararam. O País continuou a coutada de alguns. O analfabetismo e a mortalidade infantil e materno-fetal competiam com países do terceiro mundo. Nem os funcionários públicos tinham qualquer assistência médica ou medicamentosa, e eram injustificadas as faltas, por motivo de parto, às mães solteiras.

As mulheres perdiam, no casamento, o direito a administrar bens próprios. A saída para o estrangeiro dependia da autorização do marido. A diplomacia, magistratura e Forças Armadas e de segurança eram-lhes interditas. Quatro anos de escolaridade eram considerados suficientes para o povo, que se reproduzia para ser mão de obra barata.

Humberto Delgado foi o mais célebre dos assassinados pela Pide. Salazar foi à televisão acusar os comunistas do assassinato de Casimiro Monteiro, a tiro, integrado na brigada da PIDE, enviada a Espanha. Os seus ministros do Interior e da Justiça, respetivamente Santos Júnior e Antunes Varela, não foram julgados e o último foi homenageado pela democracia numa falta de pudor que estarreceu as vítimas da ditadura e os democratas com memória.

É a amnésia coletiva que permite transformar o déspota em estadista, o criminoso num patriota, o facínora amoral no salvador da Pátria.

Hitler e Mussolini tiveram diferente fim. Salazar expirou sem tino, bem sacramentado, com a cumplicidade da Igreja; sem arrependimento; sem julgamento; sem honra; com carpideiras contratadas e emoção nacional simulada.

As cerimónias fúnebres foram encenadas nos Jerónimos. Desfilaram perante o féretro os cúmplices, os curiosos e os medrosos, perante o olhar atento dos esbirros da Pide.

Para abrilhantarem a arena fúnebre, foram alugados a um circo dois infelizes, Gabriel Monjane, o Gigante de Manjacaze, um negro moçambicano cuja desregulação hormonal o fizera crescer até aos 2,45 metros, com terríveis padecimentos do gigantismo, e o anão de Arcozelo, seu companheiro no circo que os explorava como «o homem mais alto do mundo e o mais baixo». O ditador que iniciava ali a defunção merecia uma gargalhada de alívio, mas a Pide estava lá, a guardar o morto, que não fugia.

Aos telegramas de condolências do genocida Franco e de Paulo VI, difundidos como a veneração do mundo, juntou-se o da rainha Isabel II, para júbilo paroquial.

Na morte, não lhe faltaram as sotainas que o incensaram em vida, as mitras, os báculos e os anelões, nem o barrete cardinalício de Cerejeira. A escroqueria nacional desfilou à volta do ataúde numa solenidade pífia cuja dimensão não quebrava o ar provinciano da cerimónia que encheu de esperança os democratas, perseguidos, presos ou ostracizados de mais de quatro décadas.

A facilidade com que hoje se branqueia a ditadura deve-se à impunidade dos crimes do regime. O salazarismo infundiu medo, destruiu famílias, abriu prisões, usou a tortura, sacrificou meio milhão de jovens na guerra colonial, amordaçou a comunicação social, ordenou assassinatos, apoiou Franco, entregou os fugitivos da guerra civil espanhola ao fuzilamento, impôs o partido único, o analfabetismo, a fome e o atraso aos portugueses. Humilhou as mulheres, promoveu a denúncia, reprimiu a liberdade e teve na Pide, uma associação criminosa, na GNR, Legião, União Nacional e SNI os aparelhos de repressão que produziram a canalha salazarista: beatos, tímidos, dissimulados, bufos e rebufos.

Salazar era um delinquente criado no seminário, refinado no CADC e estruturado pelo fascismo internacional. A ditadura salazarista não foi um regime, era uma desregulação hormonal da repressão sexual do ditador e da volúpia de saprófitas que alimentava.

O gigante e o anão eram a metáfora da ditadura, o gigantismo da vileza e a pequenez da visão salazarista.

Apostila - Fotografia de Michel Le Tac (Paris Match via Getty Images)

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