A guerra colonial e o Movimento Nacional Feminino (MNF) – Crónica (4249 carateres)

Mais de cinquenta anos volvidos sobre o regresso à Pátria, ainda é doloroso voltar aos sítios onde o crime de ser português levou uma geração a sobreviver, em condições precárias, de armas na mão, para fazer uma guerra inútil, injusta e antecipadamente perdida.

Recordo o embarque no cais de Alcântara num qualquer dia de outubro de 1967, rumo a Moçambique, com mulheres e meninas bem vestidas a ostentarem braçadeiras do MNF para a coreografia do adeus aos mancebos que a sorte destinara a Moçambique.

Não assisti à pungência da despedida, num misto de nojo e raiva. Preferi o camarote ao convés inclinado do Vera Cruz, o silêncio do navio ao clamor do cais, a solidão ao ruído coletivo e à cumplicidade com a coreografia das damas do MNF a saltitar na amurada.
Nutria pelo exército de saias da D. Cecília Supico Pinto o mais profundo asco, o rancor de quem sabia inútil a guerra e inglório o sacrifício. Aquelas braçadeiras lembravam-me as suásticas do nazismo. Eram a versão aparentemente casta das prostitutas que os exércitos toleram ou alugam. A D. Cecília usava os apelidos do Dr. Clotário, seu marido e destacado fascista que fez a vida nos governos de Salazar e na Câmara Corporativa de que foi presidente durante 16 anos. Era uma salazarista beata com especial devoção aos alferes da Guiné.

Ouvi o ronco da partida e senti deslizar o gigante, puxado pelo rebocador, rumo à costa africana. Quis esquecer as lágrimas dos meus camaradas e dos seus familiares e aquela tropa de saias que estava ali para estimular o patrioteirismo dos que partiam, indiferente a quem morresse.

A PIDE tinha-me impedido a ida para Macau e, seguidamente, para Timor, em rendição individual, motivo por que ocultei aos meus pais a data da partida e o destino. Aliás, só soube do destino quando, em Viana do Castelo, o 1.º sargento quis pagar-me dois meses de vencimento, habituais antes da partida, o que recusei por ter recebido a importância devida, embora menor, por Macau.

As peripécias que rodearam o embarque e o destino que me coube levaram-me a decidir só vir a Portugal se, nas segundas férias, já não estivesse em zona de guerra. Não queria aumentar a ansiedade dos meus pais.
Como a Companhia esteve toda a comissão em zona de guerra, embora de perigosidade moderada, passei as férias em Nampula com idas à deliciosa Ilha de Moçambique, hoje património da Humanidade.

Foi nas segundas férias que um dia senti dores intensas, logo tornadas lancinantes. Fui atendido à porta de armas por um psiquiatra conhecido através de um amigo, Cachucho Rodrigues, médico do meu batalhão e colega dele de curso e que, por motivos de saúde, não concluíra ainda a especialidade.

Chamava-se Adriano Vaz Serra e viria a ser catedrático de Psiquiatria da Universidade de Coimbra. De pistola à cinta, vestido de alferes e de oficial-dia ao Hospital, disse-me que tinha um cálculo renal e mandou-me acompanhar ao serviço de Urologia.

Esqueci mais facilmente as dores pungentes do cálculo de oxalato de cálcio, que acabou por sair, do que a visita de personagens do MNF à enfermaria, tia e sobrinha, de cerca de 50 e 20 anos respetivamente, e uma figura menor que segurava as ofertas.

Entrou à frente a mais velha e exuberante acompanhada da de 20 anos, muito apetitosa, sobretudo para quem tinha muitos meses em zona de guerra. Era a coronela Canelhas, mulher do coronel do mesmo nome, dirigente do MNF, em visita aos internados na única enfermaria onde não perguntava a cada um pela doença ou acidente que sofrera, quase sempre moléstias de contágio, resistentes aos antibióticos, e que não era prudente indagar.
Entrou na enfermaria a gritar «então estão melhores (?), curem-se depressa que a Pátria precisa de vós», «hoje, trago um bolo muito bom, que aqui a minha sobrinha faz anos e vai casar no domingo (?)», e começou pela minha cama, a primeira das 3 do lado direito da enfermaria, a perguntar, com um sorriso que lhe aproximava as orelhas da comissura dos lábios, ou vice-versa, se queria um maço de cigarros:

- Obrigado, fumo cachimbo.

- Ah!..., mas quer uma fatia de bolo…

- Obrigado, sofro de diabetes juvenil,

e o sorriso esvaiu-se, tornou-se-lhe agreste a voz,

- Quer aerogramas?

- Obrigado, escrevo cartas,

e a sobrinha, pasmada, a olhar-me, enquanto a tia se apressava a despachar as prendas ao serviço da Pátria, imóvel, a ouvir-me dizer-lhe, de forma rude, uma grosseria saída do ódio visceral, com raiva incontida:

- Tão nova e bonita e já nesta vida…

…e o rubor a tomar conta dela, presa ao chão, até à despedida da tia, de costas para nós, depois de ter aviado uma fatia de bolo, um maço de cigarros e uns tantos aerogramas a cada um dos outros 5 camaradas que ocupavam a enfermaria, a sair apressada pela porta por onde entrara, a gritar de novo, já de costas, «curem-se depressa que a Pátria precisa de vós», e a sobrinha, desnorteada e muda, a recuperar o atraso e, talvez, a perceber que o desprezo que merecera era superior ao desejo masculino que julgaria despertar.
Foi o primeiro e último encontro com a fauna do MNF, sem consequências ou saudade.

Coimbra, 4 de julho de 2020

Comentários

Dulce Oliveira disse…
Asquerosa a caridadezinha o macinho de tabaco o aerogramazinho o ponham-se bons que a pátria precisa de vós
Deixaram descendência, é ver todos os dias nas tvs a distribuição de comida aos pobrezinhos em que despudoradamente se mostram as caras dos utentes como se de troféus se tratasse
Nojo de gente

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