O mundo virado do avesso

Na noite de hoje, que a tradição fez pretexto para reuniões familiares, há o desalento de quem costumava rumar às terras de origem para o convívio, à volta da mesa, na festa dos afetos e na ternura do encontro de várias gerações. O ágape desta noite era ansiado por todos, crentes de vários deuses e de nenhuns, ritual mais profano do que religioso, uma ansiada liturgia cuja repetição se desejava todos os anos. Era a festa da família.

Este ano, tudo mudou. A prudência aconselha preservar a saúde de quem estimamos e a defesa da nossa. Ficaram silenciosas as casas e mais crispados os rostos na sólita solidão a que nos vamos resignando.

Erguemos os braços e o espaço fica vazio; ensaiamos os beijos e faltam as faces que os acolhiam; esboçamos sorrisos e sentimos esgares com a ausência de destinatários.

O que o frio, a neve e a distância não conseguiam evitar, os encontros familiares que os afetos exigiam, conseguiu-o um vírus que trouxe consigo a destruição da economia, da sociedade e dos momentos felizes. Quem arrisca manter a liturgia sente-se receoso pelas consequências, e teme ser a vítima e o algoz de derradeiras reuniões.

Este ano não fruímos o prazer dos encontros acalentados durante o ano, ficamos pávidos com a vida que nos resta, a pensar nos danos irreparáveis que nos perseguem, na falta de tempo para nos ressarcirmos do amor sufocado, dos carinhos que esperámos e não vêm, do enlevo da reunião que se esvaiu e morreu na ausência de quem aguardávamos.

Este ano devia ser exonerado do calendário da memória e levar consigo as lágrimas que explodem e a solidão que nos habita. Este ano é devastador.

Na lúgubre melancolia que nos invade, resta a recompensa de ficar com quem se ama e, no grupo de dois apaixonados, ver num ecrã os sorrisos dos filhos e netos, um privilégio de quem tem modernos meios de mitigar a dor da ausência e o vazio do contacto físico com que contávamos preencher a noite de hoje.

Espera-se que o ano que há de vir seja o da vitória da vacina sobre o vírus, que a solidão deste ano se transforme na fraterna comunhão de homens e mulheres de um mundo que consigamos salvar das guerras, do aquecimento global e da escassez de alimentos.

Um abraço para tod@s, do tamanho do palco que o coronavírus conquistou, com votos de que o Novo Ano seja diferente e melhor. 

Não é pedir muito.

Ponte Europa / Sorumbático

Comentários

Jaime Santos disse…
De facto, Carlos Esperança, é pedir imenso. Não vivêssemos nós numa sociedade tecnológica capaz de dar uma resposta à pandemia em tão curto espaço de tempo (e de se ter tido a capacidade de suspender sectores inteiros da Economia em prol da protecção dos sistemas de saúde e das vidas individuais) e as pessoas continuariam a infectar-se e a morrer até que a infame imunidade de grupo fosse atingida por via da infecção natural (se isso fosse de todo possível). Em 1918-1919, as pessoas limitaram-se a morrer a trabalhar, porque se não morriam de gripe, morriam de fome.

Que não precisemos de o fazer, é para mim sinónimo de esperança e de progresso moral. Quem me vier dizer que antigamente é que era bom, merece um bom encharcado na cara como resposta...

Claro, espero que se aprenda com esta crise, nomeadamente que a disrupção dos eco-sistemas e do meio ambiente tem consequências bem visíveis para o nosso bem-estar.
É preciso perceber que a tecnologia, sob a forma de algo tão salvífico como uma vacina, tem os seus limites e não seremos capazes de salvaguardar o nosso futuro sem sacrifícios... E para isso é que precisamos de política.

Um excelente Natal no aconchego do lar, com os que lhe estão próximos presentes por via digital, outra das faces benignas da tecnologia neste contexto.

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