António Valdemar - Prefácio Ancoradouro

 O ilustre académico, jornalista e escritor foi generoso no prefácio do meu livro «Ancoradouro», agora publicado:


«Algumas Palavras Desnecessárias

Estamos a viver situações muito difíceis. Este tempo desenfreado e vertiginoso desperta, inevitavelmente, lembranças do passado longínquo e do passado mais próximo. É por isso que, naturalmente, cruzamos uma torrente de reminiscências, quando pretendemos enfrentar problemas atuais e pretendemos articulá-los com os desafios do futuro.

O que mais surpreende em Carlos Esperança – e basta acompanhar os sucessivos capítulos deste livro – é que não perdeu a capacidade de indignação diária perante as calamidades que se verificam em Portugal ou em qualquer outra parte do mundo. O título simbólico Ancoradouro reúne uma série de crónicas que principiam por retratar a memória das origens.

Transmite-nos a visão telúrica e humana da remota freguesia de Escalhão onde nasceu, na proximidade de Almeida, de cujo concelho eram naturais os seus avós e os seus pais. Outro vínculo profundo é a aldeia de Vila Garcia, onde fez a instrução primária e aprendeu a ver, a ouvir e a decifrar o que permanecia à sua volta. Esta relação, sem neuroses saudosistas, constitui a raiz e o suporte da rebeldia do seu temperamento e da frontalidade do seu caráter.

As reminiscências de Carlos Esperança não esquecem, também, as estruturas arcaicas da cidade da Guarda, quando frequentou o liceu e adquiriu habilitações profissionais para o exercício do magistério. Pode considerar-se o primeiro choque direto com os condicionalismos sociais, políticos e culturais da cidade mergulhada no reacionarismo político, na intolerância religiosa tridentina que incutiu, em numerosas gerações, o vírus da mesquinhez, o conforto da rotina, a falta de ambição para realizar os imperativos da mudança. Tudo o que Carlos Esperança resumiu nesta síntese lapidar «Portugal não era um país, era a cela comum de um povo oprimido».

Quando se libertava desta repressão asfixiante surgiu o destacamento obrigatório para a Guerra Colonial. Nada mais, nada menos do que «quatro anos e quatro dias» incorporado numa comissão militar em Moçambique. O confronto inevitável com a crueldade trágica de uma guerra feroz, o espetro da morte, os pressentimentos, as insónias, os pesadelos que nunca mais esquecem.

José Craveirinha, Prémio Camões da Literatura, com pleno conhecimento de realidade – preso político da Cadeia Central de Machava – pôde escrever o vigoroso protesto: «Suam no trabalho as curvadas bestas / E não são bestas, são homens, Maria! / Corre-se a pontapé os cães na fome dos ossos - e não são cães, são homens, Maria! / Pisam-se as pedras na raiva dos tacões / E não são pedras, também não são bichos, são homens, Maria! / Feras matam velhos, mulheres e crianças / E não são feras, são homens, Maria! / Crias morrem à mingua de Leite / Vermes nas ruas esperam caridade / E não são crias nem vermes / São filhos dos homens, Maria! / Bichos espreitam nas cercas de arame farpado / E também não são bichos, são homens, Maria! / Do ódio e da guerra / cresce no mundo o girassol da esperança…»

Era a realidade crua e nua, que espalhou o terror, durante 14 anos, em Moçambique, em Angola, em Cabo Verde e na Guiné. Depois, tudo começa e recomeça, há 50 anos, na madrugada do 25 de Abril. Cumpriu-se a reposição das liberdades reprimidas e castigadas durante meio século de ditadura; permitiu o início[C1]  da descolonização possível; a oportunidade para concretizar as regras constitucionais que fundamentam um Estado de Direito.

Carlos Esperança apresenta-nos agora uma seleção dos textos de intervenção diária incluídos no seu blog Ponte Europa que tem por lema esta afirmação perentória de Miguel Torga: “É escusado. Não posso ter outro partido senão o da Liberdade». A participação cívica de Carlos Esperança integra- se, aliás, no percurso de uma vida dedicada às grandes causas humanas; à firmeza de compromissos políticos; à amplitude das questões sociais e ao primado dos valores culturais e cívicos.

Fundamenta-se, no orgulho de ser republicano, na inequívoca rejeição dos privilégios de raça, de nascimento ou religião, na admissão de todas as crenças, descrenças e anti-crenças; na convicção efetiva do livre pensamento, da laicidade e na liberdade de expressão que definem «a matriz genética do regime.” Exatamente o contrário da ditadura de Salazar e de Caetano apoiadas na repressão da PIDE, na prepotência dos Tribunais Plenários, na arbitrariedade da Censura/Exame Prévio e com a aliança sistemática e afrontosa da quase totalidade do episcopado católico.

Estamos a viver uma época assinalada pelo ressurgimento dos nacionalismos populistas que conduzem aos regimes totalitários. É mais do que evidente que as crises geram ansiedade crescente e causam as maiores preocupações. Mas a adversidade também obriga a ultrapassar o marasmo. Estimula a energia para enfrentar o medo, vencer a insegurança e transpor as indecisões. Incentiva a confiança para agir e escolher as soluções mais adequadas.

A intervenção crítica de Carlos Esperança (patente em mais uma aposta de António Batista Lopes, editor dos grandes protagonistas militares e civis do 25 de Abril)) é tanto mais oportuna quanto assistimos ao adiamento de projetos estruturais para responder exigências e objetivos fundamentais introduzidos nos vários ciclos do 25 de Abril. Será possível ignorar o progressivo embranquecimento do passado. Desse passado deplorável que nos manteve – “orgulhosamente sós” –, de costas voltadas para o mundo.»

António Valdemar


 [C1]

Algumas Palavras Desnecessárias

 

Estamos a viver situações muito difíceis. Este tempo desenfreado e vertiginoso desperta, inevitavelmente, lembranças do passado longínquo e do passado mais próximo. É por isso que, naturalmente, cruzamos uma torrente de reminiscências, quando pretendemos enfrentar problemas atuais e pretendemos articulá-los com os desafios do futuro.

O que mais surpreende em Carlos Esperança – e basta acompanhar os sucessivos capítulos deste livro – é que não perdeu a capacidade de indignação diária perante as calamidades que se verificam em Portugal ou em qualquer outra parte do mundo. O título simbólico Ancoradouro reúne uma série de crónicas que principiam por retratar a memória das origens.

Transmite-nos a visão telúrica e humana da remota freguesia de Escalhão onde nasceu, na proximidade de Almeida, de cujo concelho eram naturais os seus avós e os seus pais. Outro vínculo profundo é a aldeia de Vila Garcia, onde fez a instrução primária e aprendeu a ver, a ouvir e a decifrar o que permanecia à sua volta. Esta relação, sem neuroses saudosistas, constitui a raiz e o suporte da rebeldia do seu temperamento e da frontalidade do seu caráter.

As reminiscências de Carlos Esperança não esquecem, também, as estruturas arcaicas da cidade da Guarda, quando frequentou o liceu e adquiriu habilitações profissionais para o exercício do magistério. Pode considerar-se o primeiro choque direto com os condicionalismos sociais, políticos e culturais da cidade mergulhada no reacionarismo político, na intolerância religiosa tridentina que incutiu, em numerosas gerações, o vírus da mesquinhez, o conforto da rotina, a falta de ambição para realizar os imperativos da mudança. Tudo o que Carlos Esperança resumiu nesta síntese lapidar «Portugal não era um país, era a cela comum de um povo oprimido».

Quando se libertava desta repressão asfixiante surgiu o destacamento obrigatório para a Guerra Colonial. Nada mais, nada menos do que «quatro anos e quatro dias» incorporado numa comissão militar em Moçambique. O confronto inevitável com a crueldade trágica de uma guerra feroz, o espetro da morte, os pressentimentos, as insónias, os pesadelos que nunca mais esquecem.

José Craveirinha, Prémio Camões da Literatura, com pleno conhecimento de realidade – preso político da Cadeia Central de Machava – pôde escrever o vigoroso protesto: «Suam no trabalho as curvadas bestas / E não são bestas, são homens, Maria! / Corre-se a pontapé os cães na fome dos ossos - e não são cães, são homens, Maria! / Pisam-se as pedras na raiva dos tacões / E não são pedras, também não são bichos, são homens, Maria! / Feras matam velhos, mulheres e crianças / E não são feras, são homens, Maria! / Crias morrem à mingua de Leite / Vermes nas ruas esperam caridade / E não são crias nem vermes / São filhos dos homens, Maria! / Bichos espreitam nas cercas de arame farpado / E também não são bichos, são homens, Maria! / Do ódio e da guerra / cresce no mundo o girassol da esperança…»

Era a realidade crua e nua, que espalhou o terror, durante 14 anos, em Moçambique, em Angola, em Cabo Verde e na Guiné. Depois, tudo começa e recomeça, há 50 anos, na madrugada do 25 de Abril. Cumpriu-se a reposição das liberdades reprimidas e castigadas durante meio século de ditadura; permitiu o início[C1]  da descolonização possível; a oportunidade para concretizar as regras constitucionais que fundamentam um Estado de Direito.

Carlos Esperança apresenta-nos agora uma seleção dos textos de intervenção diária incluídos no seu blog Ponte Europa que tem por lema esta afirmação perentória de Miguel Torga: “É escusado. Não posso ter outro partido senão o da Liberdade». A participação cívica de Carlos Esperança integra- se, aliás, no percurso de uma vida dedicada às grandes causas humanas; à firmeza de compromissos políticos; à amplitude das questões sociais e ao primado dos valores culturais e cívicos.

Fundamenta-se, no orgulho de ser republicano, na inequívoca rejeição dos privilégios de raça, de nascimento ou religião, na admissão de todas as crenças, descrenças e anti-crenças; na convicção efetiva do livre pensamento, da laicidade e na liberdade de expressão que definem «a matriz genética do regime.” Exatamente o contrário da ditadura de Salazar e de Caetano apoiadas na repressão da PIDE, na prepotência dos Tribunais Plenários, na arbitrariedade da Censura/Exame Prévio e com a aliança sistemática e afrontosa da quase totalidade do episcopado católico.

Estamos a viver uma época assinalada pelo ressurgimento dos nacionalismos populistas que conduzem aos regimes totalitários. É mais do que evidente que as crises geram ansiedade crescente e causam as maiores preocupações. Mas a adversidade também obriga a ultrapassar o marasmo. Estimula a energia para enfrentar o medo, vencer a insegurança e transpor as indecisões. Incentiva a confiança para agir e escolher as soluções mais adequadas.

A intervenção crítica de Carlos Esperança (patente em mais uma aposta de António Batista Lopes, editor dos grandes protagonistas militares e civis do 25 de Abril)) é tanto mais oportuna quanto assistimos ao adiamento de projetos estruturais para responder exigências e objetivos fundamentais introduzidos nos vários ciclos do 25 de Abril. Será possível ignorar o progressivo embranquecimento do passado. Desse passado deplorável que nos manteve – “orgulhosamente sós” –, de costas voltadas para o mundo.

António Valdemar


 [C1]

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