Tragédia na Praça da República – crónica (3662 carateres)
Em 1938 Salazar e o Estado Novo garantiam à Pátria ordem e segurança. A Legião e a Mocidade Portuguesa eram, desde 1936, instrumentos de enquadramento ideológico e de defesa dos valores nacionalistas.
O País vivia satisfeito com o homem que, segundo confidência
posterior da freira Lúcia, vidente em Fátima, ao Cardeal Cerejeira, fora
enviado pela Providência, desígnio que os hereges contestavam e os crentes
repudiariam muitos anos depois.
Por toda a Europa florescia o fascismo e os autóctones
nutriam-se de propaganda e das tradições religiosas. Em S. Bento, Salazar
imitava Mussolini, cuja fotografia exibia na secretária do seu gabinete, mas
sem os arroubos folclóricos do ideólogo nas ruas.
Os tambores da guerra rufavam e as cordas do nacionalismo
vibravam em toda Europa. Em Portugal cultivava-se a fé, o analfabetismo e a
miséria. Festas e procissões eram o divertimento que empolgava as massas.
No início de julho de 1938, Coimbra vivia o entusiasmo dos
anos pares com a procissão da Rainha Santa, com o andor de uma tonelada a
percorrer a Baixa, vindo do convento de Santa Clara aos ombros de 24 mancebos
que alombavam a pesada padiola até à Rua da Sofia e, no regresso, em sentido
inverso.
Para juntar a fé e a festa profana lembrou-se o edil de
Coimbra, Ferrand Pimentel de Almeida, de solicitar à Legião Portuguesa, ou esta
ao edil, uma exibição para provar a eficácia dos meios de salvamento em
situações de catástrofe.
Deve aqui o cronista fazer um parêntese para dizer que a
Legião Portuguesa promovia em várias cidades cursos de Defesa Civil do
Território ensinando a colar papéis nos vidros das casas, para evitar a quebra
com eventuais explosões de bombas, e encenando fogos que os bombeiros
rapidamente apagariam. Esses cursos mantiveram-se depois da guerra até à década
de sessenta e os edis, nomeados pelo ministro do Interior, garantiam os meios
necessários.
Voltemos, pois, a essa segunda-feira da festa da Rainha
Santa que ficaria na história pela tragédia que há cinquenta anos ainda ouvi
referir diversas vezes pelos que a recordavam com amargura e, sobretudo, pelos
que a usavam para ridicularizar a ditadura.
Entre os espetáculos previstos, exposições, feiras de
gastronomia e artesanato e provas desportivas, o exercício de salvamento
provocava a maior animação. A noite, foi para a noite que o espetáculo fora
montado, seria iluminada pelo clarão de chamas por entre as quais circulariam
macas com as vítimas salvas do incêndio para gáudio da populaça.
Na Praça da República foi construído um edifício de madeira
de 4 andares para mostrar a eficácia dos bombeiros no simulacro de um fogo que
seria ateado para mostrar que os bombeiros estavam preparados para o salvamento
de pessoas e bens nas habitações.
Próximo do incêndio, sentadas em cadeiras, as melhores
famílias desfrutavam, como no teatro, os melhores lugares e exibiam a
ascendência. Atrás, de pé, milhares de pessoas.
A multidão aguardava impaciente o primeiro fumo e dentro, à
altura dos quatro andares, aguardavam varredores do lixo como figurantes. Foi
ateado o fogo, e o fogo não pegou. Deitaram mais combustível e o incêndio
irrompeu furioso. Os bombeiros ainda não tinham chegado e já se ouviam gritos
vindos do edifício em chamas. Os gritos tornaram-se lancinantes e os bombeiros
não apareciam. Das janelas atiraram-se as vítimas, em desespero. Dizem que foi
breve a consumação da tragédia. Morreram 11 pessoas entre os que se estatelaram
e os carbonizados. A multidão dispersou horrorizada.
Dois dias depois saíram da Sé Nova 11 caixões acompanhados
pelas autoridades civis, militares e eclesiásticas. No funeral, à frente da
multidão, seguiam o bispo, o presidente da Assembleia Nacional, o edil e altos
dignitários militares, civis, religiosos e da Legião Portuguesa no pungente
adeus às vítimas do fracasso do salvamento. Então já tinha morrido outra
vítima, mas do posterior funeral desta não encontrei registo.
Apesar de tantos mortos e tão poucos milagres não esmoreceu
a fé na Rainha Santa e a procissão continua com o desfile ora enriquecido com
cavalos da GNR e sem exercícios de incêndios simulados.
Em 1938 os varredores do lixo foram incinerados em Coimbra,
e o País manteve o lixo da ditadura por mais três décadas e meia à espera de
incineração numa madrugada de abril.
Coimbra, 10 de março de 2024
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