Miguel Sousa Tavares no Expresso de ontem
Para quem não lê o Expresso e queira uma opinião corajosa e lúcida:
(Miguel Sousa Tavares, no "Expresso")
«E agora, Sr. Presidente, como é que nos tira desta
embrulhada onde nos meteu? Como aqui escrevi há duas semanas, o rol de
promessas eleitorais, associado à conjuntura internacional, torna Portugal ingovernável:
ou porque não serão cumpridas e serão então cobradas nas ruas e nos serviços
públicos, ou porque serão cumpridas e nos levarão à falência.
Como era mais do que previsível, acordámos segunda-feira com
um país ingovernável. Era previsível para qualquer um, mas especialmente para
alguém como Marcelo Rebelo de Sousa, que passou uma vida inteira a acumular
fama e proveito como imbatível leitor e construtor de cenários políticos, capaz
de ler nos astros o que o comum dos mortais ainda não tinha descortinado na
parede em frente. Deixemo-nos, pois, de meias-palavras: Marcelo não tem
desculpa. Estamos como estamos porque ele assim o quis.
No “Público”, e na esteira de vários outros, Manuel Carvalho
escreveu que “o prenúncio desta degradante democracia liberal estava à vista
quando uma maioria se extinguiu à luz dos indícios de corrupção”, pelo que
“Marcelo fez o que a sua consciência lhe ditava e que o grosso da opinião
publicada lhe exigia”. Pois, o problema é que o grosso da opinião publicada
tomou por indícios de corrupção o que não leu com atenção ou não percebeu, e,
no mais, um Presidente deve guiar-se por aquilo que, em cada momento, quer a
opinião pública, e não a opinião publicada. Até porque, em contrário, há quem
diga mesmo que foi Marcelo quem sugeriu a Lucília Gago que introduzisse no
comunicado da Procuradoria-Geral da República o tal parágrafo que ambos sabiam
que levaria à imediata demissão de António Costa. Eu não acompanho essa teoria
da conspiração ou do maquiavelismo, mas continuo a perguntar-me o que se terá
passado na conversa entre o Presidente e a procuradora-geral que antecedeu a
demissão do primeiro-ministro: terá Marcelo exigido saber, como lhe competia, o
que havia de sólido nas suspeitas em relação a António Costa? E, em face disso
— que era nada, como concluiu o juiz de instrução —, conformou-se com a
execução pública do PM às mãos da PGR e com a sua demissão? Isto feito, e mal
feito, com que legitimidade constitucional optou por recusar o nome indicado
por António Costa para lhe suceder na chefia do Governo ou, em alternativa,
pedir ao PS que indicasse um nome, como se faz em todas as democracias normais?
Quem disse a Marcelo que em 2022 os portugueses tinham votado apenas em António
Costa, e não também no PS, e que, se por qualquer razão ele não terminasse o
seu mandato, preferiam eleições antecipadas e desembocar na situação que temos
agora? A que deve ele obediência: às suas inclinações partidárias, às suas
interpretações políticas ou às regras da Constituição da República? E, já
agora, para que lhe serviu a opinião de um Conselho de Estado rigorosamente
dividido a meio sobre o caminho a seguir? Apenas para o desprestígio acrescido
de ver dois dos conselheiros, por si nomeados e ligados à AD, votarem pela
convocação de eleições e depois aparecerem a fazer campanha eleitoral pela
mesma AD…
E agora, Sr. Presidente?
Não, Marcelo não tem desculpa. Trata-se de alguém que passou
anos a defender o valor da estabilidade e da previsibilidade dos mandatos
levados até ao fim. Que, nos últimos dois anos, disse e repetiu que nada
poderia pôr em causa o ritmo de execução do PRR — a última grande oportunidade
de financiar o desenvolvimento do país com dinheiros europeus —, chegando a
dizer a uma ministra que não lhe perdoaria um só dia de atraso. E, afinal,
manda tudo ao charco em duas penadas e cavalgando uma insustentável ficção
processual do Ministério Público relativamente ao PM — que, isso sim, devia
preocupá-lo, e muito. Interrompe uma governação antes ainda do meio do seu
termo, paralisa o país durante meses, lançando o alerta em Bruxelas, e dá-se ao
luxo de deitar borda fora aquilo que qualquer país europeu hoje mais preza: uma
maioria absoluta de um partido dentro do sistema democrático. Hoje podíamos ter
à frente do Governo alguém como Mário Centeno, o nome que António Costa levou a
Marcelo e que este recusou: alguém que nem sequer era filiado no PS, que
conhecia o Governo e as finanças, que tinha provas dadas aqui, conhecimento e
prestígio lá fora. O país não teria parado, o PRR e os principais dossiês não
estariam paralisados e, sobretudo, aqueles que ainda se esforçam por acreditar
num futuro para Portugal não experimentariam mais uma vez a decepção de ver a
vida a andar para trás, a sua e a de Portugal, porque lá em cima se anda a
brincar com coisas sérias para satisfação de protagonismos ou de impulsos
infantis.
Mas não é apenas a instabilidade governativa que eu não
perdoo a Marcelo. Mais ainda do que isso, o que não lhe perdoo é ter soltado a
besta presa na cave, a besta da demagogia: o Chega. Por mais análises que me
forneçam sobre as razões sociológicas e políticas do milhão e cem mil votos do
Chega, algumas certamente pertinentes, há uma que desde logo o justifica: a
compra de votos. O Chega comprou votos, comprou muitos votos, e comprou-os com
uma campanha de demagogia despudorada e irresponsável. Contem-nos: nas forças
policiais e respectivas famílias são 100 mil; nos reformados, a quem prometeu,
pelo menos, uma pensão equivalente ao salário mínimo, mesmo para quem não
contribuiu, serão uns 300 mil; nos professores, a quem prometeu tudo o que
reclamam, dos 120 mil terão cativado uns 30 mil; nos agricultores outro tanto,
e por aí fora, tudo junto somando metade do milhão e cem mil votos de André
Ventura. Num país onde tantos se habituaram a exigir tudo do Estado e tão
poucos se perguntam quem e como pagará, o discurso de Ventura está condenado ao
sucesso, muito mais do que o racismo, a xenofobia, o autoritarismo e tudo o
resto a que, por preguiça, gostam de o reduzir. O sucesso eleitoral de André
Ventura chama-se demagogia à solta, e o pior de tudo é que, por competição e
por sobrevivência, ele contagiou em larga medida todos os outros. Como aqui
escrevi há duas semanas, o rol de promessas eleitorais, associado à conjuntura
internacional, torna Portugal ingovernável: ou porque não serão cumpridas e
serão então cobradas nas ruas e nos serviços públicos, ou porque serão
cumpridas e nos levarão à falência.
Quando recusou a solução de estabilidade governativa que o
país esperava e que ele próprio tinha apregoado durante tanto tempo, preferindo
antes lançar o país numa aventura eleitoral desnecessária e de efeito
previsível, Marcelo sabia ao que ia. Mas não se conteve, porque há muito que
ele ia dando sinais de incontinência, aliás com ameaças explícitas. E não
venham cá com o desgaste dos “casos e casinhos”, porque no mais grave deles — o
caso Galamba, onde Marcelo entrou em choque frontal com o PM, exigindo publicamente
a demissão do ministro — ainda estou para perceber qual é a responsabilidade de
um ministro que demite um assessor que se recusou a entregar uns documentos
exigidos por uma Comissão Parlamentar de Inquérito e depois, sem mais qualquer
intervenção da sua parte, vê o assessor invadir à força o gabinete, roubar o
computador de serviço e levá-lo para casa, só o devolvendo a um agente do SIS e
por intervenção de outro membro do Governo. Mas, ainda que a razão fosse os
“casos e casinhos”, a renovação do Governo com a indigitação de outro PM, e
exterior ao PS, esvaziava o argumento.
Não, a verdade é outra: o cargo deve ser profundamente
aborrecido para quem gosta de viver a vida. O primeiro mandato presidencial
acredito até que possa ser estimulante e apelativo: andar por aí a conhecer o
país e as pessoas, dar beijos e abraços, ser recebido com a despreocupação de
quem só pode prometer o bem e não fazer o mal, viajar lá fora e conhecer os
grandes do mundo, escutar o hino com a herança de quase nove séculos às costas.
Mas, isto passado, o segundo mandato é mais do mesmo e, sendo o tédio mau
conselheiro, a tendência para a asneira torna-se inevitável. Mas nenhum resiste
à tentação do segundo mandato, nem mesmo alguém como Mário Soares, que tinha
tão mais vida do que aquela que cabia nas paredes de Belém. No primeiro mandato
vimos o melhor de Marcelo, um contagiante suspiro de alívio depois dos anos de
chumbo da majestade cavaquista; no segundo, estamos a assistir ao seu pior, à
facilidade com que os grandes princípios degeneram numa absoluta vacuidade.
Prejudicial ao país. Mas, enquanto o tempo não passa e isto não tem fim, fica a
pergunta a que só ele tem obrigação de responder: e agora, Sr. Presidente, como
é que nos tira desta embrulhada onde nos meteu? Dia 15 de Março, sexta-feira,
cinco dias depois do acto eleitoral, ainda nem sequer sabemos quem ganhou as
eleições e se quem ganhou quer mesmo governar.»
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