Miguel Sousa Tavares in Expresso de 29/03/2024
Acarinhá-los? Não: enfrentá-los e derrotá-los
Não, eu não tenho a menor vontade de acarinhar os votantes
do Chega, sejam eles quantos forem. Quem deve ser acarinhado são os outros.
Despachado como pára-quedista para chefiar a lista da AD no
Algarve, o vice-presidente do PSD, Miguel Pinto Luz, teve uma derrota tão
previsível quanto humilhante, atrás do PS e do Chega. Talvez a pensar já na
desforra a curto prazo, não perdeu tempo a namorar os eleitores do Chega,
afirmando que eles têm de ser “acarinhados”. Mas, verdade seja dita, o instinto
de compreensão e tolerância para com o milhão e cem mil eleitores do partido de
André Ventura contagiou todos ou quase todos os que foram chamados a
enfrentá-lo nas eleições de 10 de Março, começando logo por Pedro Nuno Santos.
Era preciso, explicaram-nos, entender as razões da sua “revolta”, do seu justo
desencanto com a política e o estado do país, de igual forma que a mesma
compreensão, e até rendição, era necessária para com a revolta do braço armado
do Chega — os polícias de camisas negras, a cantar o hino como patriotas de
excepção e a ameaçar um motim público, todavia juntando à solidariedade óbvia
de Ventura também a do Bloco de Esquerda ou de comentadores como Daniel
Oliveira. Até parece que não perceberam o que têm pela frente: não se trata só
de combater ideias “racistas e xenófobas”, como repetem preguiçosamente (e,
como se viu, sem sucesso), mas de tentar deter uma onda galopante de demagogia
desenfreada e populismo de taberna que tornará o país ingovernável e, por
arrasto, a democracia indefesa.
Quando oiço os dirigentes políticos da democracia falarem do
Chega, percebo até que ponto é restrita a liberdade de pensamento de quem faz
da política a sua profissão e da necessidade de ganhar votos a sua
sobrevivência. De quem, como Pinto Luz, precisa de namorar todos os eleitores,
incluindo aqueles que os desprezam. Eles não podem dizer, nem sequer
murmurando, aquilo que salta à vista, que é o inimigo a enfrentar: não André
Ventura, que lançou a semente à terra e a rega e aduba inteligentemente, mas sim
os que o seguem como a um Messias. Quem já viu desfilar na TV brasileira os
inúmeros canais das Igrejas Evangélicas (que já têm também representantes na
bancada parlamentar do Chega) não ignora as semelhanças: o problema não são os
“sacerdotes” e “bispos” daquelas confrarias de bandidos da fé, mas sim o
“rebanho” de descamisados sem causa, de alienados à mercê de aldrabões de
feira.
O problema, meus caros senhores, não é André Ventura, o
único verdadeiro dirigente da confraria: o problema é mesmo o povo, o povo do
Chega.
Divido esse povo em duas categorias: os mal informados e os
mal formados. Os mal formados são os tais racistas por doença mental, xenófobos
por nacionalismo pacóvio e saudosistas do Estado Novo por conforto pessoal —
são a minoria, os “intelectuais” do partido. Os mal informados, a grande
maioria, são uma amálgama entre aqueles que, ignorando tudo sobre o estado do
mundo, que confundem com as “verdades” que lhes debita o algoritmo das redes
sociais a eles destinado, acham que Portugal só não é um país triunfante entre
todos porque “eles”, os que nos governam, são corruptos e inimigos do povo; e,
por outro lado, aqueles que sempre existiram e que representam o Portugal no
seu pior: os maledicentes profissionais de café, os intriguistas, os invejosos,
os frustrados, os falhados, os que nunca reconhecem o mérito alheio nem aceitam
o mérito como critério na sua actividade — a grande coligação dos medíocres.
Esses confundem democracia com prosperidade e preferem sempre o seu bem-estar
pessoal à liberdade colectiva e individual. Esses — não todos, mas a maior
parte — precisam que apareça alguém a dizer-lhes que o seu mal-estar nunca é
culpa própria, mas “deles”, e que lhes explique que a frase de Kennedy deve ser
lida ao contrário: “Pergunta o que o teu país pode fazer por ti.” Porque não se
informam, ignoram tudo sobre a conjuntura internacional e pensam que só por mau
governo e má vontade é que Portugal não é um oásis de prosperidade. Porque não
pagam impostos nem se preocupam com a despesa ou a dívida do Estado, acreditam
nos milagres económicos, tão evidentes e tão simples, que Ventura lhes propõe
como alternativa. Porque não são livres, não se importam de viver na
dependência e, porque não são sérios na sua forma de estar, não gostam de ver
os imigrantes estrangeiros na “sua” terra, mesmo a fazer os trabalhos que eles
não querem fazer e que o tal “sistema” que tanto odeiam os subsidia para não
terem de fazer — ao contrário do que os seus pais e avós fizeram outrora, sem
desfalecimento, durante a “prosperidade” do salazarismo, naquelas comunidades
de emigrantes cujos descendentes agora, vá-se lá saber porquê, também deliram
com o Chega, porque estão “revoltados”.
Revoltados? Revolta é uma coisa séria, isto não o é. Sim, há
sobejas razões de revolta: uma globalização que ajudou os miseráveis mas
desprotegeu os simplesmente fracos ou pobres; um capitalismo que desregulou o
mercado, capitulando perante os grandes interesses e corporações; uma cultura
woke levada ao extremo da idiotice que agride e afasta multidões de gente
simples; uma geração de líderes sem rasgo nem coragem, com medo de dizer as
verdades e de fazer opções claras — aliás, muito aterrorizados por um populismo
que não sabem ou não querem enfrentar em campo aberto. Mas essa revolta, para
ser séria, não pode alimentar-se da ignorância, da demagogia e do triunfo da
mediocridade.
Não, eu não tenho a menor vontade de acarinhar os votantes
do Chega, sejam eles quantos forem. Quem deve ser acarinhado são os outros: os
que votam na democracia, os que acreditam na liberdade como primeiro valor da
vida colectiva, os que não querem depender nem esperar por milagres ou embustes
prometidos mas abrir caminho por si, pelo seu esforço, o seu trabalho, a sua
criatividade, a sua contribuição para a sociedade. Os 80% que não votaram no
Chega. Esses é que têm de ser acarinhados, apoiados, empurrados para cima, para
que não fiquem apeados por falta de oportunidades, enquanto se gastam atenções
e recursos com os inúteis sentados nos cafés a dizer mal do “sistema”, só
porque desta vez descobriram as virtudes do sufrágio universal e lá se dignaram
levantar o cu da cadeira e ir votar na alternativa do Dr. Ventura.
Não é um combate fácil, mas, sobretudo, tem de ser travado e
tem de ser ganho — não dando tréguas na luta das ideias, no desmascaramento das
mentiras e na exposição do embuste. E governando bem, governando a pensar no
país e não no partido, privilegiando não quem mais exige mas quem mais
retribui, não quem mais grita e tem mais palco mas quem mais produz, mais inova
e mais arrisca. Acordando no que é essencial em cada momento e discordando no
que é diferente, mas, acima de tudo, não tendo medo de contrapor sempre a
verdade e os factos contra a demagogia e o facilitismo de dizer ao povo o que o
povo quer ouvir e não o que o povo precisa de ouvir.
Cito e subscrevo aquilo que Francisco Mendes da Silva
escreveu no “Público” há 15 dias: “O tal povo ‘esquecido’ que vota em Ventura é
muito mais ouvido do que se pensa. Determina muito mais do que se julga as
prioridades mediáticas do país.” Isto é um facto, e a imprensa também tem
muitas responsabilidades no assunto. Esta nossa doentia tendência para dar
sempre mais voz e mais importância a quem mais berra ou desfila pelas ruas a
cantar o hino tem como contrapartida o esquecimento de todos os outros. E os outros
são os 80% que não votaram no Chega ou os 50% que pagam IRS. Só num país
desnorteado é que a prioridade são aqueles e não estes. Olhemos para cima e
para a frente, não para trás ou para baixo. Deixem que o diga com todas as
letras: aquela senhora que eu vi na televisão a dizer que ela, a filha e a neta
desta vez tinham decidido ir votar e todas tinham votado no Chega, para “ver se
as coisas melhoram”, não me inspira compreensão alguma — apenas desprezo. Vai
fazer 50 anos que a senhora só podia votar em eleições de fantochada e aposto
que não estava melhor na vida.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga
ortografia.
Comentários
Tem razão, mas parto do princípio que só será lido aqui pelos que não compram o Expresso. Eu compro e faz-me falta.