Maniqueísmo e política internacional


O maniqueísmo não é um exclusivo das religiões e marca profundamente a política onde as ideologias raramente se preocupam com os factos, bastando-lhes os reflexos clubistas e os ressentimentos pessoais.

Agostinho de Hipona, elevado à santidade graças à conversão ao cristianismo, deixou marcas no pensamento do que se costuma designar por ocidente, apesar de ter alterado os traços mais caraterísticos do seu pensamento inicial.

O braseiro político que percorre o planeta cria comentadores a quem o maniqueísmo serve de muleta.  Se os EUA estão de um lado, esse é o lado mau, ainda que do outro se encontrem os facínoras mais cruéis ou os mais anacrónicos suicidas. Valha a verdade que a política externa dos Estados Unidos não prima pela clarividência nem pela defesa dos direitos humanos mas, ainda que imperfeita, serve uma das raras democracias que funcionam e um povo que, pouco dado a pensar, é capaz dos mais generosos atos de heroísmo e das mais cruéis manifestações de violência gratuita.

Hoje é a Síria o vespeiro mais perigoso onde se jogam as peças do xadrez internacional. A ideologia e os sentimentos humanitários estão ausentes do alinhamento com o Governo ou com os rebeldes. A Rússia e o Irão defendem o presidente Bachar el Asad enquanto os Estados Unidos e a Arábia Saudita apoiam o Exército Livre da Síria (ELS). Hoje, em Alepo, a segunda cidade síria, não há lugar a um módico de humanidade, a um resquício de complacência. No teatro de guerra civil o ódio xiita e o sunita aumentam a violência sectária enquanto a população procura fugir e os generais do regime hesitam entre o combate e a deserção segundo a perceção da correlação de forças.

O primeiro-ministro desapareceu, os rebeldes agridem e torturam os adversários entre os quais 48 milicianos do Irão que ali foram em busca das 72 virgens e de rios de mel doce e aguardam que a morte os liberte da tortura de que Alá se desinteressa ou que sirvam de moeda de troca. Nos dois lados da barricada a religião é um detonador do ódio. A sharia já funciona no seio do ELS para mostrar que Alá é grande e Maomé o seu único profeta.

Em Damasco, por ora, depois de cruentos combates, o regime controla o poder. De um lado e do outro são todos tão maus que apenas apetece retirar-lhe o povo que é imolado pela demência da fé e os interesses das grandes potências.

Seja qual for o desfecho da tragédia não há futuro que compense o sangue derramado.


Comentários

e-pá! disse…
A devastadora 'guerra civil' que está a desenrolar-se na Síria é um sangrento episódio político-militar, alicerçado numa indisfarçável peleja de cariz religioso, que continua envolto em sinuosos meandros estratégicos e releva demasiada opacidade para seja facilmente inteligível.
O 'Ocidente' desde há muito - segundo relatos desde a época de Bush - que urde um concertado alinhamento contra o actual regime sírio, tecido à volta do fim de (mais) uma ditadura. Quem olha para o Oriente (próximo ou extremo) tem a noção de esse argumento (em termos abstractos válido com certeza) é mais uma falácia e que esconde outras razões (menos 'nobres').

Por outro lado, os fundamentos das posições da China e da Rússia, tomadas no seio do CS da ONU, face a este conflito, não tem sido suficientemente divulgados. A ninguém satisfaz a justificação de estas duas (super)potências terem-se arvorado, subitamente, em 'forças de bloqueio'...

Por último, mas não menos importante, todo este conflito decorre no pátio das traseiras de Israel que, estranhamente (ou aparentemente), mantêm um profundo distanciamento, suficientemente equívoco para ser tomado como real ou verdadeiro.

É cedo para julgarmos esta insurreição que degenerou em guerra civil. E quando tivermos capacidade para entender o conflito na sua plena dimensão e nos seus múltiplos envolvimentos políticos e estratégicos será, como é habitual, demasiado tarde...
É esse o problema dos países de religião islâmica. Normalmente, o que está é mau; mas nunca se sabe se o que está para vir não será ainda pior.
Habituei-me a esta angustiante dúvida há mais de 40 anos, desde a "revolução" na Pérsia/Irão. Festejei a queda do Xá; mas arrependi-me do festejo logo que vi o que se seguiu.
Guia disse…
Estranho este texto num blogue sempre tão bem informado sobre as alavancas que "movem" os poderes politicos nos bastidores...
Então não têm ainda conhecimento das fabulosas reservas de gás natural encontradas - por empresas americanas - no mediterrâneo, entre Chipre e Israel!?! E que só através da Síria é possível fazer passar tal exploração por terra...!O que os E.U.A. e a UE estão a fazer na Siria é ABSOLUTAMENTE ESCANDALOSO! a continuarmos assim, acabaram as soberanias nacionais - é ao sabor dos interesses dos mais poderosos!
O conflito religioso entre sunitas/xiitas estárá presente na Síria, quem o nega? É apenas mais um, na questão central do controlo do Golfo Pérsico. Quem quiser continuar a iludir-se com direitos humanos, e primaveras árabes, e rebeldes com ideais de liberdade, e presidentes tiranos que matam o seu povo, bem pode continuar a beber o seu xarope até ao fim. Mas depois não se queixe.
O que se disputa na Síria é de natureza geo-estratégica; é o controlo da energia, que para mal dos povos existe na região; é o suporte do dólar, como moeda que só as transacções do petróleo sustentam; é o controlo das monarquias títeres; é Israel e o eterno conflito com os Palestinos; é o Irão; é o terreno disputado palmo a palmo à Rússia, à China e outros emergentes do Oriente.
A América dos bons tempos ainda sonha com tempos bons. E enquanto vai destruindo os povos europeus à custa da finança, com a cumplicidade das elites europeias, vai aniquilando os outros à custa das armas. À Síria chegou-lhe agora a vez.
O resto é paleio de publicistas, pagos para nos encherem a cabeça de balelas e dúvidas metódicas.
Fico satisfeito por ter escrito um post que vale pelos comentários que suscitou.
soudocontra disse…
Guia, concordo em absoluto. Infelizmente a manipulação mediática ainda faz dos EUA uma "democracia" e... exemplar, quando não passa de um regime que aspira a dominar o planeta. Vejam este vídeo, entre muitos outros que há por aí:
http://youtu.be/cHAwbYpRGkQ
E o 11Set!?!? Atenção, que a Al-qaeda também foi inventada pelos EUA,como se prova no vídeo anterior, por Bush-Blair &Cª para iniciarem as guerras que estão em curso - assassinatos de Sadam, Kadafi, centenas de pessoas mortas, o Afeganistão, a Síria agora, derrube de democracias na América do Sul, guerra do Vietnam, 2 bombas atómicas sobre 2 cidades populosas!? Até quando? Democracia? Que tristeza!?!?!?

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