‘Reforma Florestal': notas sobre um intricado problema...


Hoje, em Portugal, um dos assuntos do dia é o reordenamento florestal. Cada incêndio que ocorre – e continuarão a ocorrer – tende a aprofundar e agitar esta questão.

Não vai ser fácil reordenar a floresta que se implantou desordenadamente quer no que diz respeito às características dos espaços florestados quer na disposição (e plantação) das espécies arbóreas. Não vamos voltar à ‘vaca fria’ dos eucaliptais que alteraram significativamente o coberto florestal nacional com todas as consequências que originam e infestam uma discussão muitas vezes inquinada na sua génese e finalidades por interesses ocultos.

Reordenar a floresta será difícil porque a capacidade de intervenção dos poderes públicos está confrontada com os interesses privados, sejam os sediados em minifúndios sejam os subsidiários das grandes indústrias, nomeadamente, a das celuloses.
O necessário equilíbrio entre uma floresta ordenada e planeada que seja capaz de resistir às cíclicas vagas de incêndios estivais e a manutenção de uma expedita rendibilidade económica será difícil de conseguir. A não associação destes dois parâmetros condena em definitivo a floresta tornando inútil a remota opção tomada de desenvolver uma economia florestal e que data de alguns séculos.
A floresta tem servido a economia nacional de diferentes modos desde a época dos Descobrimentos.

O grande problema é de facto a estrutura da propriedade florestal maioritariamente privada e renitente a qualquer medida de ordenamento que possa significar – mesmo que só a curto prazo – um decréscimo do produto retributivo. Ora, cerca de 85% do coberto florestal é propriedade privada e só 15% está afeita ao domínio público, pertencendo 2% ao perímetro das chamadas ‘matas nacionais’ e 13% estão em regime comunitário (baldios). Não é este o quadro geral dos países europeus onde a maioria do coberto florestal é do domínio público.

Como se chegou, em Portugal, a esta situação atípica que, no presente, ameaça bloquear qualquer tipo de ‘reforma florestal’?
Não encontrei uma cabal justificação histórica, económica ou política pelo que serão permitidas várias hipóteses.
Todavia, há condições particulares da ‘evolução portuguesa’ que poderão estar por detrás de uma aberrante situação relativa a uma floresta no nosso país esmagadoramente privatizada.

Sem querer regressar à ‘sereníssima’ Casa de Bragança que a partir do reinado de D. João I e à pala dos feitos e conquistas do ‘santo’ e emérito Condestável se tornou dona e senhora da quase totalidade deste Reino e, posteriormente a partir de 1640, com a assunção do estatuto de casa real transformou o País num imenso ‘reguengo’ que com sobressaltos perdurou até ao advento da República. Os portugueses e as portuguesas eram meros súbitos, para não dizer tristes vassalos, indignos do estatuto de ‘proprietários’.
 
É difícil perceber se foi a Lei do Banimento, do tempo de D. Maria II ou, a mais tardia Lei da Proscrição, da I República, que desbarataram o infindável património dos Braganças que se confundia com o Reino tornado num gigantesco morgadio absolutamente inibidor de todo e qualquer desenvolvimento económico.
Na verdade, terá sido o processo de extinção dos morgadios que tinha criado um vínculo transmissível de modo indivisível e cujo desaparecimento é subsidiário da Revolução Liberal e só entra em vigor em 1863 sendo desde tempos recuados o travão do ‘regime alodial’ instalado no País desde a Idade Média e que determinava as características do sistema fundiário.
Em consequência procedeu-se ao sistemático retalho da estrutura fundiária aristocrática em franca decomposição por questões políticas, muito entroncadas nos princípios libertadores da Revolução Francesa.

Associando esse facto ao abandono do Interior consequência de medidas governamentais discriminatórias e erradas levaram a que a distribuição fundiária desse azo à proliferação de um florestação errática e caótica entremeada por largos espaços de matagal. Hoje, esta intensiva parcelização, que se foi acentuando como os sucessivos compromissos sucessórios e nunca contrariada pela afirmação de políticas de coesão nacional (p. exº. o emparcelamento ou o associativismo rural) , poderá ser um sério entrave ao desejado ordenamento da floresta.

Da Administração das Matas do Reino (1824) nascida à sombra do Liberalismo ao Fundo de Fomento Florestal, criado pelo Estado Novo em 1945 e que visava promover a florestação dos terrenos privados vão muitos anos em que parece difícil desenhar os contornos evolutivos.
De qualquer maneira, o afundamento do Mundo Rural vítima de cegas políticas burocratizantes e de matriz centralizadora, a miséria associada a condições de imobilidade social quando não de retrocesso e a ‘natural’ migração interna para as cidades e para o e litoral levou a profundas modificações da estrutura territorial de que o incremento desordenado de uma florestação avulsa e caótica, capaz de gerar magros proventos de retorno imediato com pouco ou nenhum investimento, será um dos vetores mais inquietantes e 'obstaculizantes' do futuro da floresta.

Será difícil, por exemplo, abrir ‘corta fogos’ – faixas de interrupção de combustível com 100 ou 120 metros de largura - ao longo das manchas florestais existentes porque tal medida, apesar de preconizada por muitos técnicos como essencial para o combate aos incêndios, estará povoada por múltiplas e aleatórias expropriações para as quais não existe suporte orçamental.
Estamos perante um longo caminho que vai desde a escravidão à presente florestação, passando pelos servos da gleba, os meeiros, os assalariados, os vassalos e, finalmente, os pequenos lavradores produtores diretos, isto é, trata-se de uma dinâmica história que é o determinante do regime fundiário (ainda) existente.

É necessário começar a discutir o processo de reforma da floresta envolvendo tudo e todos (e não só os exímios e preclaros agentes técnicos). Não será possível chegar a resultados concretos e palpáveis se não existir capacidade (política) para mudar e contrariar a trajetória vigente revertendo (não basta estancar!) todo um processo de despovoamento e desertificação do Interior.
Uma dinâmica muito antiga que ganhou velocidade desde o século XIX, com o advento da industrialização e a progressiva penúria que continua a rodear as tradicionais atividades agrícolas, a maioria das quais de subsistência.

Enfim, o que há para mudar em termos de reordenamento territorial e, mais concretamente, o florestal mexe com uma panóplia de condições e variantes que escapa a medidas pontuais emergentes de conjeturas políticas datadas e ultrapassa as medidas imediatistas que temos vindo a observar.
A capacidade do Estado – do Governo - intervir no terreno privado apresenta-se, no momento e nas atuais relações de poder, como um grande imbróglio político.

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