Violência doméstica e jurisprudência exótica

Não creio que possa atribuir-se uma relação de causa/efeito entre exóticos acórdãos de juízes misóginos e o sofrimento e morte de numerosas mulheres que, dentro ou fora do lar, são vítimas de violações, crueldade, humilhação e dor, e é inevitável a associação.

Também existe, é certo, violência feminina sobre homens, mas a percentagem e as suas consequências, não sendo desprezíveis, e merecendo igual atenção policial e ponderação judicial, são seguramente ínfimas.

O que não pode evitar-se é o escrutínio público da complacência de alguns julgadores da violência doméstica, capazes de misturar o Código Penal com um código de conduta da Idade do Bronze [Antigo Testamento], e, muito menos, a intolerável benevolência de quem julga os excêntricos julgadores.

Saber que um execrável acórdão considera o adultério [crime para a religião, não para o Código Penal], relevante para a atenuação da pena por crimes de desmedida violência, perpetrados por dois patifes contra uma mulher indefesa, é motivo de alarme e revolta. Saber que o autor esteve em vias de ver arquivado o julgamento de tão injusto acórdão e de ainda mais iníqua justificação, que só o voto do presidente do STJ evitou, é causador de enorme perplexidade. Uma repreensão registada, sem qualquer sanção para a juíza que também subscreveu o acórdão, parece um caso de cumplicidade corporativa, só para acalmar os clamores da opinião pública. É intolerável numa sociedade civilizada.

Não pode haver juízes com a mentalidade dos patriarcas tribais da Idade do bronze nem avatares desses patriarcas que possam ser juízes. Aos tribunais cabe a aplicação das leis e não os julgamentos morais. Um juiz reacionário envergonha a Justiça e contribui para o seu descrédito. Há poucos juízes assim, mas suficientes para arruinarem a reputação da imensa maioria cuja sabedoria, sensatez e probidade honram a democracia.

Só o escrutínio de uma opinião pública esclarecida das decisões judiciais, legitimamente não controláveis pelo poder político, pode obstar a que se repitam acórdãos onde se fale em “zonas do macho ibérico” e se transfira para as vítimas a culpa dos agressores.

Não vale a pena insistir nos miseráveis acórdãos que indignaram a opinião pública, mas é tempo de exigir aos juízes um cuidado redobrado e punições adequadas a um clima de violência sobre as mulheres que, não sendo novo, passou a inquietar o País.

Não há tradições, preconceitos ou culturas que sirvam de atenuante para a tragédia a que conduzem. As sucessivas ameaças, agressões, humilhações e mortes de mulheres são as consequências de uma cultura misógina transmitida através de gerações e que há muito devia estar erradicada.

Não pode haver contemplações da opinião pública.

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