A liberdade de expressão e a democracia
O direito à liberdade de expressão merece a maior amplitude e a mais veemente defesa. A memória da ditadura, de quem sentiu a repressão e viu aquilo de que eram capazes os censores, os repressores e a própria opinião pública, submissa ao medo e à tradição, não permite limites superiores aos do Código Penal e, mesmo esses, desafiáveis.
Aliás, em Portugal, entre ofensas e liberdade de expressão,
a jurisprudência, que honra os juízes, privilegia a última em detrimento das
primeiras, mas o ADN da censura e da repressão ficou a impregnar a consciência
coletiva e a transformar pessoas normais em grotescos julgadores dos limites da
liberdade.
Não se deve dizer mal dos mortos, porque já faleceram, nem
dos vivos porque acabarão mortos, como se os ditadores devessem ser esquecidos;
não convém dizer mal do clube porque fere os adeptos; na religião, não se
ofendem as crenças e tradições, como se as tradições fossem toleráveis e respeitáveis
as crenças. A única exceção é a política, onde difamar e vilipendiar os adversários
políticos é um dever, que exclui os correligionários.
Quanto à liberdade de expressão e aos limites, há uma bitola
para cada indivíduo, quase todos disponíveis para serem censores e, muitos, com
pulsão pidesca para denunciarem presumíveis prevaricadores.
O que sucederia a criadores, humoristas, escritores,
jornalistas e críticos se os limites se contivessem no entendimento de um povo
que herdou os genes de quarenta e oito anos de censura e opressão?
Um lápis não mata; o corpo nu não agride; a palavra não
destrói. São apenas propostas. As crenças, essas, são mais perigosas porque
impõem tradições e, por mais anacrónicas que sejam, têm legiões de funcionários
a viver à sua custa.
O crente raramente se interroga se a sua crença ofende a alheia.
E se ofender? Há quem se ofenda com a música, a igualdade entre homens e
mulheres, o vestuário que estilistas criam, novas correntes de pensamento ou
revisões críticas da História e dos costumes.
É lícito, cedência após cedência, prescindir das
democracias, onde o respeitinho deixou de ser obrigatoriamente bonito, o
adultério de ser criminalizado, o aborto de ser punido, e o divórcio, a
autodeterminação sexual da mulher e o pluralismo ideológico passaram a direitos
inalienáveis, ainda que o clero e outros trogloditas gostassem de os suprimir?
Há frases que obrigam a refletir, “todos somos estrangeiros
em qualquer lugar” e “todos somos ateus, em relação à religião dos outros”. Estes
truísmos, que exigem a repetição tautológica, são heresias para as quais não
bastam penas de um Inferno imaginário. Há quem as queira punir por
atropelamento, à facada, à bomba, e à pedrada.
Vamos paulatinamente regressando à Idade Média com o
proselitismo dos extremistas e a bênção de idiotas úteis. As crenças levam-lhes
certezas e o livre-pensamento dúvidas.
A intolerância só é legítima para com ela.
Ponte Europa / Sorumbático
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