Que raio de sorte!

Quando a esperança de vida se ia reduzindo, fruía-se o tempo com os amigos e os dias eram contados em função do regresso de filhos e netos. Os afetos explodiam e os braços enchiam-se de corpos que se estreitavam; os lábios encontravam faces que se ofereciam à doce carícia de contactos; os dias eram o espaço de tempo para exprimir sentimentos, cultivar ócios e regressar às leituras que nos preencheram a vida.

Tudo nos fazia esquecer as rugas, os lapsos de memória, moléstias da idade e dores do corpo e da alma. Tudo se desvaneceu numa reclusão autoimposta ou em deambulações solitárias, na esperança de um impossível regresso à normalidade.

Um homem nunca anda só, é verdade, traz consigo memórias de vida, marcas do trajeto que percorreu, histórias por contar, recordações que nos preenchem os vazios, mas falta agora a alegria que os amigos traziam à tertúlia e até o ar que se inspirava na tranquila e lenta oxigenação dos pulmões, agora concentrado de anidrido carbónico que se acumula na máscara que nos defende e oprime.

Hoje, todos os amigos são suspeitos, e os filhos e netos, perigosos. Receamos o ar onde passou o troglodita sem máscara ou tossiu um mascarado a aliviar o catarro. Fugimos do restaurante habitual, que antes regurgitava de gente, agora com o espaço vazio à espera de melhores dias.

Há meio século os homens tiravam o chapéu por cortesia, agora colocam a máscara por delicadeza e olham-se de soslaio os energúmenos que a usam no pescoço, no pulso ou a trazem no bolso.

Lenta e inexoravelmente o distanciamento físico converte-se em afastamento social.

Que raio de sorte!

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