A castração de S. Sebastião em Coimbró (Crónica)
O historiador Augusto José Monteiro, generoso amigo, enviou-me, para usar como me aprouvesse, uma história autêntica, extraída de um livrinho de 2007: “Lendas, contos e tradições do Alto Tâmega e Barroso”.
Aqui fica, na nudez da narração, à guisa de exórdio da
crónica, a deliciosa história que o investigador exumou, a explicar a origem da
devoção popular a uma santa, em Coimbró, aldeia perto de Boticas (Chaves):
«Os três santos de
Coimbró
"Coimbró tinha como padroeiro São Sebastião. Só que era
um santo muito pequenino, o que não agradava aos moradores da aldeia. Então um
dia em que andavam zangados com Santa Marta, que era grande, disseram:
– Deixa, que nós vamos comprar um São Sebastião grande e vamos
pô-lo no altar de Santa Marta.
Juntaram então dinheiro, com um peditório pela aldeia, e
compraram um São Sebastião grande. Puseram-no no lugar de Santa Marta que foi
para o lugar do São Sebastião pequeno.
Depois puseram-se a pensar o que haviam de fazer com o São
Sebastião pequenino. Não iam ficar com dois santos iguais. E é então que um dos
habitantes propõe:
- Não há problema nenhum. Capamos o São Sebastião pequenino
e fazemos dele uma Santa Quitéria. E ficamos assim com três santos diferentes.
Meu dito, meu feito. Nasceu então uma Santa Quitéria, que é
uma santa pequenina que existe numa capelinha situada num monte próximo de
Coimbró"».
Esta é a história que acrescentou uma santa à devoção da
aldeia que hoje, por economia de meios, faz uma festa, com procissão, em 13 de
agosto, a Santo Amaro e Nossa Senhora da Saúde, duas homenagens numa única
manifestação de fé, mantendo as orações a Santa Quitéria, talvez esmorecida já a
excitação pelo mártir S. Sebastião.
Coimbró criou a devoção a uma das nove irmãs gémeas, cujos
estudos hagiográficos a situam no século II como jovem mártir, filha de um
nobre pagão, que começou a obrar milagres e a ser venerada no séc. VIII, ainda
que o martírio só aparecesse referido, pela primeira vez, no séc. XII, com
direito a inscrição no Martirológio Romano, depois de citada em dois Flos
Sanctorum, graças ao empenho dos jesuítas e à provada eficácia da defunta
donzela como advogada de defesa contra a raiva.
Nascida da remoção testicular do mártir trespassado de
setas, Coimbró passou a venerar dois mártires, grande o varão e pequena a
donzela, como mandou a fé e a anatomia dos géneros, num contexto a que não foi
alheia a exaltada devoção a S. Sebastião.
Não foi maldade ao santo que tanto os fascinava, foi o horror
ao desperdício da imagem pia, adicionado à dimensão da fé, onde sobra sempre lugar
para mais uma devoção.
Esta história é uma deliciosa metáfora da religiosidade
medieval dos meios rurais onde a ingenuidade e o apego ao divino seguiam a
gestão criteriosa dos parcos haveres.
Coimbró foi buscar ao «Martirológio» – rol da Igreja
católica que arrola todos os santos e beatos declarados desde o início da ICAR
–, mais uma santa, enquanto centenas de povoações viram, em meados do século
XX, exonerada Santa Filomena que cancelou festas, amargurou multidões de
devotos e infligiu, na fé, feridas profundas que a benevolente reintegração da
santa, recriada pelo papa João Paulo II, nunca cicatrizou.
Santa Quitéria é uma santa que resiste, ao contrário de S.
Victor que, já neste século, foi exonerado, pela diocese de Braga, de patrono
da paróquia e freguesia com o seu nome.
No séc. IV, o jovem Victor, segundo a tradição, fora
condenado à morte por se recusar a participar numa cerimónia pagã, crime
e castigo desmentidos dezasseis séculos depois, para amargura de 30 mil almas!
Que importava a pequena mentira, em 2004, à diocese e à religião onde sobram prodígios?
Pelo sofrimento dos crentes da freguesia e paróquia de S.
Victor, é fácil concluir o que padeceram os franceses quando o culto a S.
Guinefort, cão e mártir, injustamente morto pelo dono, foi proibido, e o santo apeado
dos altares e arrasado o templo em sua honra, por ser a santidade reservada a
humanos, com Roma indiferente à tradição e ao martírio do quadrúpede.
De sinal contrário, foi o júbilo dos devotos de S.
Sebastião, convictos de que a santidade se mede aos palmos, a ampliarem o
taumaturgo que mais os atraía e a adicionarem uma peanha para Santa Quitéria,
exposta à veneração dos paroquianos de Coimbró.
Eram assim as decisões expeditas em Terras do Barroso, muito
semelhantes em todo o norte do País onde a fé criou raízes profundas e a os crentes
nunca abdicaram de a gerir segundo os padrões profanos.
Ponte Europa / Sorumbático
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