O coração de D. Pedro IV
Penso que sabia, desde há muito, que D. Pedro IV tinha declarado deixar à cidade do Porto o coração, então uma cidade liberal de onde o rei partiu para a libertação do País do absolutismo monárquico que D. Miguel, seu irmão, pelo menos pela parte materna, impunha de forma violenta com a ajuda entusiástica do clero rural miguelista.
O que julgava ser uma metáfora, deixar o coração à cidade do
Porto, à semelhança da minha afirmação, deixei o coração na aldeia dos meus
avós maternos, era afinal uma realidade.
O cadáver foi esquartejado para lhe arrancar a víscera real,
duplamente real, no músculo verdadeiro e na linhagem do dador.
Para quem via na ideia de guardar peças de cadáver, sem fins
científicos, uma tendência mórbida das religiões, da Capela dos Ossos, em
Évora, ao corpo de S. Francisco Xavier, em Goa, dos relicários de várias
religiões aos corpos de monges que o budismo guarda em santuários, deparou-se
agora com o coração do Sr. D. Pedro IV de Portugal, Pedro I do Brasil,
conservado em formol na capela-mor da igreja da Lapa, no Porto.
Há uma profunda ironia no local onde ficou guardado o
coração real de um destacado maçon que combateu o absolutismo real contra o
catolicismo ultramontano que apoiava o miguelismo sob os auspícios da maçonaria
cujo pendor liberal está na sua génese e os seus mais destacados membros
fizeram a Revolução de 1820.
Afinal, não são apenas os santos os retalhados para as
relíquias que inspiram a piedade dos devotos. Também um maçon, decorado com
o mais alto grau da instituição que está excomungada pela Igreja católica,
tem honras pias na capela-mor de uma igreja romana onde lhe guardaram o coração
desde 1834.
É possível que a ironia ofenda quem vê na relíquia, não uma
profanação do cadáver de D. Pedro, rei que é património do liberalismo, e põe agora
em euforia os reacionários, desde o edil do Porto ao abrutalhado PR do Brasil.
O primeiro já alvitrou a exposição da víscera de cinco em cinco anos para exibir
um recipiente de formol com um coração dentro.
Se houver o regresso à macabra celebração de pedaços de
cadáver não faltarão devotos a desejar que, quando se finarem, sejam
preservados o fígado de Cavaco, o cérebro de Passos Coelho, a língua de Marcelo,
os pulmões de Carlos Lopes ou os pés de Ronaldo.
Foi pena não ter ocorrido aos seus contemporâneos guardar,
para exemplo, o órgão de um certo abade de Trancoso a que deve a celebridade
que a posteridade consagrou.
Não sei se fui eu que perdi o juízo ou se há, como julgo,
muita gente ensandecida, mas temo o proveito político de Bolsonaro graças à viagem
da víscera de D. Pedro e dos acompanhantes em turismo fúnebre.
Ponte Europa / Sorumbático
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