O soldado Moura e o desastre de Mopeia – Crónica

Naquele sábado, 21 de junho de 1969, o Batelão Chupanga fazia mais uma travessia do baixo Zambeze entre a localidade que lhe deu o nome e Mopeia.

Ficou registado que eram 17H30 quando o Chupanga, apinhado de tropas e viaturas que vinham de Lourenço Marques para a província do Niassa, atravessava o rio Zambeze, começou a meter água e se virou rapidamente.

Arrastou no naufrágio centena e meia de homens que faziam a travessia e seguiram para as águas revoltas com as 30 viaturas que traziam.

Mais de meio século depois, o maior desastre da guerra colonial está esquecido e apenas vive na memória dorida dos que aí perderam amigos e de raros familiares dos que então pereceram. Hoje, já nem a guerra se condena e, muito menos, se referem as vítimas que provocou.

Por amarga coincidência, dois soldados eram, como eu, do Bcaç. 1936, exportados para Moçambique “na defesa da civilização cristã e ocidental”, na linguagem pia do cardeal Cerejeira, ou na “defesa do nosso Ultramar infelizmente perdido” na definição profana dos nostálgicos do Império.

O Alcino Moura, da Companhia de Malapísia, tinha ido buscar o Unimog 411, de que era condutor, e que se afundou enquanto se agarrou à guitarra emprestada que o ajudou a chegar à margem. Foi um dos 54 náufragos que se salvaram e voltou a Malapísia.

O Moura não teve a mesma sorte. Eu esperava-o. Era um dos meus camaradas, um dos que no jargão militar era meu soldado. O nome de batismo era António Manuel Moura de Almeida, conhecido apenas por Moura.

Sempre gostei dele, talvez por lhe reconhecer uma estranha capacidade para desaparecer quando era preciso. Era divertido, fazia truques de ilusionismo e era capaz de hipnotizar alguns soldados. Nasceu para o espetáculo e não para a guerra.

Já não me recordo do pretexto que usou ‘para prestar serviço’, durante curto espaço de tempo na Companhia de Massangulo e ignoro o motivo que lhe permitiu o internamento no hospital, logo transferido de Vila Cabral para Nampula e, três meses depois, para Lourenço Marques. Chegaram-me ecos da vida agitada, do envolvimento com a mulher de um major, de outras aventuras, de peripécias dignas do ilusionista, de alguma que lhe antecipou a alta médica e o regresso.

O Moura voltava ao Catur quando desapareceu nas águas do Zambeze. Deixou viúva a jovem que ficou na aldeia com uma filha sua. Era o único casado. Não tinha mais de 23 anos e já tinha mais vidas vividas do que muitos durante uma vida longa.

Assisti à morte do Melo Dias, ao seu último suspiro da vida que deixou sob o rodado da Berliet, ao estertor nos meus braços, depois de ter antecipado a saída da messe para a escolta que o aguardava, mas vi-lhe o corpo rasgado pelo peso da camionete, ali dentro do quartel, o rosto afogueado, a vida apagada na incúria de quem exigiu ir sentado no para-lamas, e adivinhei-lhe os órgãos esmagados quando vi um testículo projetado, preso ao corpo pelo cordão espermático. Foi duro, mas vi o corpo sem vida.

Do Moura nunca digeri a morte ou fiz o luto. Imaginei durante anos a aflição da asfixia, o corpo frágil a lutar para se manter à tona, o macabro truque de esconder a jangada, a luta contra a água e crocodilos, a respiração suspensa, a agonia, a morte sem corpo que a certificasse. Ficou apenas nome numa folha de passageiros, uma guia de marcha que levou, memórias dissolvidas na água.

Pensei durante anos na mulher e na órfã que não conheci e ele nunca mais viu, no rio caudaloso e nos crocodilos que o habitavam, na falta do corpo e nos instantes breves do sofrimento. Acabaram-se os truques com cartas e sessões de hipnotismo para gáudio da malta, as perguntas sobre onde estaria o Moura e o Braga a dizer, já se desenfiou.

O Moura foi um dos 101 desaparecidos no naufrágio, mas era o amigo e camarada que devia regressar em dezembro com os que sobrámos dos que fomos em outubro de 1967, embarcados no cais de Alcântara e aí descarregados 26 meses depois.

Guardei para os pesadelos a memória dolorosa do camarada perdido, em silêncio como soe suceder para o que mais dói. Foram mais de quatro décadas a querer teimosamente esquecer até ao dia em que falei nele ao Pinto e me queixei da mágoa. Que raio de ideia!

O Daniel Pinto era um homem bom, sensível e discreto, uma espécie de telefonista do Batalhão. Era o alferes de Transmissões, o chefe dos alcoviteiros que sabiam primeiro as mortes e escondiam segredos das operações militares de que todos íamos sabendo.

Quando lhe referi a mágoa que persistia da memória que a ambos há de acompanhar, a idealização da viúva e da órfã que não conheceu o pai, ouvi este inesperado desabafo:

- Tu recordas o Moura, mas não imaginas que, no regresso, procurei a família, que era próxima da minha zona, para lhe dar os pêsames. Encontrei a sogra e a mulher dele com a filha ao colo.

Sei como o abalou a cena e não lhe fiz mais perguntas sobre o quadro cuja moldura nos fez regressar à savana do Niassa e rever a guerra que deixámos e não saiu de nós.

Coimbra, agosto de 2022  

Ponte Europa / Sorumbático

Comentários

Monteiro disse…
Era um regime fascista que assentava no silêncio dos acontecimentos para não perturbar a consciência do povo. Em Portugal havia muitos assinantes de publicações estrangeiras cuja distribuição normalmente era feita pela Livraria Bertrand. Certo dia o armazém foi invadido por uma brigada da Pide e foram a todas as publicações e cortaram com uma lamina as folhas que relatavam o massacre de Wiriamu em Moçambique e a distribuição seguiu normalmente, só que os assinantes telefonavam indignados a saber o que tinha acontecido aquelas páginas e os meus colegas rindo-se mostravam-se surpreendidos não fosse a Pide lixá-los. Que ridículos que eram.
O massacre está largamente difundido este episódio é que não deixa de ser original.

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