Boas-festas

(Cartoon de Zé Oliveira)
Voltar às origens na noite de consoada é a viagem marcada no calendário, imposta pelo hábito e repetida pela inércia. À medida que as coisas e os lugares se encaixam cada vez menos na memória mais intensamente os procuramos. Parte-se em busca do passado e teme-se a desilusão de não achar sinais. Mas volta-se sempre, quiçá com vontade de exumar memórias, de recuperar sonhos e afectos que nos fazem falta, como se no eterno regresso surgisse a fonte da juventude.

Todos os anos, quando Dezembro chega, o frio vem lembrar-nos a festa que se aproxima ao ritmo da nossa ansiedade, enquanto os apelos ao consumo nos seduzem, insinuando uma felicidade duradoura. Fazem-se compras sem ponderação e arquivam-se prendas à espera de destinatário. Os livros têm nesta época o lugar que mereciam durante o ano, viajam com as pessoas à espera de leitor, quedam-se em mãos que os afagam ou, simplesmente, arquivam-se no abandono da estante.

Depois de árduas discussões no seio dos casais decide-se o local da consoada em unânime contrariedade. Nunca durante o ano a diferença entre irmãos e cunhados ou pais e sogros se tornou tão nítida e fracturante.

A viagem é o regresso magoado aos locais e memórias de um tempo que já foi, por entre chuva miudinha e frio de rachar. Doem o ossos em intermináveis filas de trânsito antes de se ver iluminada a torre do campanário onde outrora soavam as horas de dias muito mais calmos.

Chega-se de noite e de mau humor com o vento gélido a arrefecer sorrisos compostos para a chegada e os quartos húmidos indiferentes aos nossos ossos e ao reumático.

A lareira é o destino e centro de um semicírculo de profundos afectos e sólidos rancores que se reúnem alinhados por ordem etária na casa dos mais velhos e são alimentados a filhós e bolos que líquidos capitosos ajudam a empurrar. É aí que se desembrulham as prendas embaladas em papel reluzente com laços artisticamente colados. Agradece-se com um sorriso de desprezo aquele presente desinteressante do parente que nos detesta. Fica-se deslumbrado com a oferta generosa que redime uma ofensa antiga e enternece-nos a simples presença de quem não pede desculpa por gostar de nós.

Recordam-se em silêncio os ausentes pela falta que fazem e a saudade que produzem e os presentes pelo incómodo que provocam e o fastio que acarretam.

Quase todos se empanturram na esperança de matar de vez a fome ancestral de gerações que permanece viva na memória de quem a herdou durante séculos. Gabam-se os pastéis de bacalhau recheados de batata a tresandar a óleo, a excelência do peru mal assado, a qualidade do polvo que saiu duro, repetindo-se discretamente a dose de bacalhau cozido, batatas e couves, regados com azeite de boa qualidade, numas merecidas tréguas ao bitoque e à pizza, enquanto se aguarda a panóplia de doces e frutos secos. São momentos para acumular prazer e peso enquanto a azia e os espasmos não devolvem o remorso e o incómodo.

Por uma noite repousam os guerreiros das batalhas adiadas do quotidiano, levam para o seio familiar uma ou outra intriga para não perderem o treino, cumprimentando-se com uma profusão de ósculos ora fraternos, ora de circunstância. E, por entre os votos canónicos de Boas Festas, recordam-se pequenos agravos e ruminam-se vinganças por umas palavras que não caíram bem, algum insulto durante a disputa do relógio de ouro do avô ou aquela terrina da Vista Alegre que espalharam a cizânia nas últimas partilhas.

Sobrevive do paganismo o festejo do solstício de Inverno. Fez dele a tradição judaico-cristã a festa da família. E quando a família se comporta como deve, a festa acontece e é um suave pretexto de encontros ansiados em volta de sabores que a memória guarda e de aromas que nos transportam à infância numa viagem carregada de afectos e saudade.

Que no dia certo haja festa em vossas casas.

Boas-festas, caros leitores.

Comentários

Anónimo disse…
Esta é uma época de Paz, amor e fraternidade.
Deixando as quezílias, as opiniões divergentes e tudo o mais, venho desejar ao Sr. Carlos Esperança um Bom Natal e um ano de 2006 cheio de saúde e sucessos.
Se bem que o ano vai começar mal para C.E. com a vitória do Grande Prof. Cavaco Silva (foi só uma pequena provocação de final de ano).
Com os melhores cumprimentos
Anónimo disse…
Desejando também votos de Boas Festas ao Carlos Esperança, queria-lhe dizer que valeu bem o tempo que este seu amigo anónimo e afecto ás posições maioritárias aguardou, para aqui ler o seu comentário natalicio. Não sei se foi retirado do conjunto de cronicas publicadas no JF, mas está concerteza ao nivel daquelas.
Anónimo disse…
Carlos, estás deprimido?
Anónimo disse…
Gosto das coisas que escreve, mas... para estes dias, mesmo pagãos, não há uma nota positiva? Não acha o seu texto pessimista? Ok, mesmo por meia dúzia de dias?
Anónimo disse…
Tem razão o Carlos! Não há grande esperança no futuro!
Com este Sócrates até as crianças estao com medo do seu futuro!
Não tarda muito aparecem MAISA noticias nos jornais a pedir desculpas de terem votado nele!
Agora parece que vamos pagar portagem para andar com o carro nas nossas cidades! VERGONHA!!!!
Ainda querem o Soares....
LIVRAAAAAAAAAAAAAAAAA....
Mano 69 disse…
BOAS FESTAS para si Carlos Esperança e para os seus.
Anónimo disse…
Mano 69:

Obrigado pelos votos que retribuo. Espero vir a conhecê-lo.

Um abraço.
Manuel da Gaita disse…
Um abraço e o desejo de Boas Festas a todos são os desejos do blog O Piolho da Solum ao pessoal do blog Ponte Europa

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