TANCOS: O que se abre, o que se fecha e o que esvoaça …
O caso do roubo de armas em Tancos é, nos tempos que correm, uma montra sobre as questões de Justiça em Portugal e da evolução dos conceitos em relação a este problema.
A ‘conceção utilitarista da justiça’ (chamemos-lhe assim) abundantemente (abusivamente?) expressa nas atitudes da PJM, face ao roubo em Tancos, pode ser entendida como uma sub-reptícia manifestação de corporativismo da dita condição militar mas, na realidade, o problema poderá ter implicações mais profundas.
Todavia, sendo a questão transversal, ou seja, a existência de foros especiais de justiça não é uma situação de somenos importância. A existência de uma ‘justiça militar’ – como qualquer outro foro judicial autónomo - necessita de ser ponderada.
Muito embora se reconheça a existência de uma sociedade castrense com códigos de disciplina e regulamentos próprios e, acima de tudo, específicos, a questão coloca-se no âmbito de os militares serem (ou não) considerados cidadãos e, portanto, sujeitos à justiça dita ‘civil’.
Argumentarão alguns que a ‘condição militar’ traz algumas condicionantes ao exercício pleno da cidadania. Certo, mas essas condicionantes nunca devem ‘apagar’ o basilar da condição cidadã, isto é, antes de tudo o mais, o militar é um cidadão incumbido de uma missão especial no que concerne à defesa da soberania.
A Constituição da República Portuguesa (CPR) no seu artigo 213º confina a existência de Tribunais Militares à ‘vigência do estado de guerra’ e, nessa situação, com competência para julgar ‘crimes de natureza estritamente militar’.
Por outro lado, a existência de um ‘direito autónomo’, isto é, um Direito Penal Militar, em tempo de paz, parece bastante questionável. Uma coisa será a competência disciplinar outra o Direito Penal onde, como o nome explicita, o que está em causa é a moldura penal que pode (ou não) ser aplicada ao agente do crime que tenha atuado com culpa.
Na verdade, o Direito Penal Militar nasce com a dinastia de Bragança em apoio ao Conselho de Guerra, um verdadeiro Tribunal Militar. Mais tarde (século XVIII) surge um homem que personificará o Código Militar– o conde de Lippe. Todavia, a influência do conde de Lippe neste terreno manifesta-se à volta de procedimentos essencialmente regulamentares visando aspetos disciplinares.
Quando, em finais do século XIX, surge o Código de Justiça Militar com características de ‘foro privado’ que muito dificilmente se irá libertar da imagem de ‘foro privilegiado’ o que, per si, é, em termos de conceção da Justiça, uma situação aberrante onde os militares foram colocados a balancear entre iniquidades e a discriminação.
No final da I República (1925) todo o Código de Justiça Militar foi revisto e introduzidas garantias mais alargadas aos processos de foro militar e limites para as penas oriundas dos Tribunais Militares.
Durante o fascismo a instituição militar transformou-se na guarda pretoriana do regime salazarista e regressamos às prerrogativas e privilégios dos velhos tempos das legiões romanas onde a lei estava na ponta das armas e tribunos era a caixa-de-ressonância imperial.
Durante o fascismo a instituição militar transformou-se na guarda pretoriana do regime salazarista e regressamos às prerrogativas e privilégios dos velhos tempos das legiões romanas onde a lei estava na ponta das armas e tribunos era a caixa-de-ressonância imperial.
Depois do 25 de Abril a particularidade da conjuntura militar centra-se numa estrutura que tendo estado enfeudada ao Estado Novo entra em franca contradição com o (relevante) facto da libertação do fascismo ter tido origens próximas na sociedade castrense.
Ora, havendo razões para questionar um Direito Penal Militar mais haverá para contestar a existência de uma Polícia Judiciária Militar (PJM) que, em princípio, está encarregue de instruir os processos neste âmbito.
A justificação de um Direito Penal Militar baseada na existência de especificidades (hierarquização, coesão, disciplina, espirito de missão, etc.) só muito a custo deve incluir questões que definam uma ‘condição’ especial.
Não parece idêntica a base – em tempo de paz – que justifica como sendo crucial uma regulamentação disciplinar própria e uma outra que, de facto, discrimina os cidadãos que incorporam as instituições militares, abrindo uma excecionalidade em relação ao Código Penal ‘normal’ (latu sensu).
Na realidade, a ‘condição militar’, tem, no ambiente de atuação, um contexto diferente da ‘normalidade’, nomeadamente, devido a integração de forças armadas e ainda a especificidade de missão. Daí a terminologia de 'missão' e o atributo de 'condição'.
As exigências em matéria de deveres especiais e a existência de regras de conduta próprias não devem colidir com os direitos de cidadania. Um balanceamento entre este conjunto de deveres específicos e a preservação de direitos gerais deve ser atingido dentro um quadro democrático que garanta liberdades e segurança a qualquer cidadão independentemente das condições e missões que esteja adstrito ou queira prosseguir. Os valores e princípios da sociedade castrense, embora exigentes, não devem ser diferentes ou distintos da sociedade civil.
O que está constitucionalmente consagrado no artº. 27º.. da CPR, item 3, alínea d), que enumera as ‘excecionalidades’ incidentes sobre condições de liberdade e segurança é bem explicito quando refere: “Prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente”.
Ora, este preceito constitucional define as balizas das excecionalidades – onde aparece a condição militar - dentro do conceito geral que está expresso “Todos tem direito à liberdade e à segurança’.
A definição deste “tribunal competente” – que a CRP já aborda no art.º 213 em tempos pacíficos de normalidade - e, necessariamente, o processo criminal instrutório que lhe está subjacente são, de facto, questões em que o ‘caso do roubo de Tancos’ pode vir a suscitar novas ponderações e mostram potencialidades para abrir uma nova discussão pública onde não deve estar excluída a pertinência da existência de um Direito Penal Militar (para além ou tutelando os necessários regulamentos de disciplina militares).
Na verdade, um roubo de património público ocorrido em instalações militares deve levar a uma investigação das condições internas como ocorreu. Esse ‘processo investigativo interno' deverá estar sediado na instituição militar com pleno respeito pela hierarquia e códigos regulamentares e disciplinares em vigor com vista a esclarecer circunstâncias específicas que tenham contribuído para proporcionar (e facilitar) a perpetração do crime. De certa maneira, é a ocasião que faz o ladrão.
Mas o crime de roubo – mesmo se praticado por militares – deverá ser judicialmente investigado pelos meios disponíveis, consagrados e aplicáveis à generalidade dos cidadãos.
A existência de uma polícia judiciária de âmbito restrito e especifico (privativa?), ou mesmo corporativa, pode conduzir a situações similares às que parecem ter-se verificado no ‘roubo de Tancos’ onde terá (?) pontificado um paternalista 'justicialismo doméstico'.
Na verdade, a definição do ‘interesse nacional’ não está cometida à instituição militar sendo uma prerrogativa das estruturas democráticas sujeitas a escrutínio público.
A instituição militar tem outra missão. Será um instrumento de defesa, à fortiori, do ‘interesse nacional’, definido coletivamente.
A instituição militar tem outra missão. Será um instrumento de defesa, à fortiori, do ‘interesse nacional’, definido coletivamente.
Portanto, a confusão estabelecida entre uma condição meramente instrumental com a capacidade definidora de desígnios é um dos ‘incidentes’ que gravitam à volta de Tancos.
E que convinha esclarecer – para futuro - sem tabus e sem preconceitos.
São sempre melindrosas as coutadas de ‘direito privado’. Tanto mais que, com o fim do Serviço Militar Obrigatório (2004), não se introduziram as necessárias adaptações orgânicas de que o quadro penal será uma das - variadas - componentes.
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