Bcaç. 1936 – Almoço anual_2018
Camaradas:
Ano após ano, todos os que podemos, dos que restamos, voltamos neste mês de outubro ao encontro dos que, em 11 de outubro de 1967, saímos do Cais de Alcântara para Catur e Malapísia, para participar na mais injusta e inútil das guerras onde a ditadura que aqui nos oprimia jogou a sobrevivência, para terminar, sem honra nem glória, numa madrugada de Abril.
Há meio século aproximávamo-nos do meio da comissão e tínhamos já o nosso quinhão de sofrimento e angústia, de privações e revolta, de saudade e amargura.
Éramos cerca de 300 homens entre mais de meio milhão de desterrados, ao longo de 13 anos, para os três teatros de guerra, Angola, Guiné e Moçambique. Estivemos longe da Pátria 26 longos e dolorosos meses, para voltarmos alguns menos dos que fomos, para trazer dentro de nós a guerra que não mais nos largou.
É justo recordar o Ti Luís Machambeiro, o saudoso coronel Vilela, e o major Beirão que a democracia fez general, que impuseram o humanismo e a ética que impediram atos de violência sobre prisioneiros e nos pouparam aos traumas que torturam muitos jovens de então. Graças a eles, não temos de que nos envergonhar, não juntámos ao sofrimento o remorso da impiedade gratuita infligida aos que ali viviam há séculos por pleno direito.
Do ambiente hostil, da revolta comum, de sofrimento partilhado, nasceram os laços que nos unem, a sólida amizade da família que fomos, da única que aí tivemos, laços que o tempo preservou, afetos que despertam e se reforçam em cada novo encontro que todos os anos nos reúne.
E que raio de saudade nos impele para estarmos aqui! Que generosidade a das mulheres, filhos e netos, que nos acompanham! Que paciência a do Torres, Barros e Carlos Lopes para prepararem esta reunião onde vimos recordar os mortos que lá deixámos, com a saudade que não se apaga, e procurar os vivos que restamos na imensa paixão da vida e no enorme prazer de encontrar nos septuagenários de hoje os jovens de há meio século!
Na impossibilidade de todos dizerem a cada um o que gostariam, aceito a incumbência de a todos saudar, e muito especialmente a quem nos acompanha, de transmitir o abraço fraterno de quem um dia descobriu dentro dos camuflados toda a família que lhe coube, durante mais de dois anos, em Malapísia e Catur.
Temos consciência de que, sem qualquer um de nós, ficam mais pobres estes encontros. Por isso, viremos sempre procurar os que puderem vir, mesmo quando formos poucos, até sermos os últimos. Hoje e sempre, nos anos que ainda houver, recordaremos comovidamente os que pereceram em Catur e Malapísia e os que todos os anos partem, os que vão saltando da viatura da vida nas curvas da picada onde derrapamos.
Na alegria de hoje, na felicidade deste encontro, termino com palavras idênticas às que há anos, não sei quantos, proferi sobre o navio Vera Cruz, que nos levou e trouxe: «ficaram dele estas amarras que ainda hoje nos ligam, amarras que o medo e a revolta robusteceram, que resistem aos temporais da vida porque são fortes os laços nos unem e é firme o cais da fraternidade a que se prendem».
Meus caros camaradas e amigos, reitero as saudações às famílias de cada um de vós que se juntaram à família que somos, nesta cadeia de afetos que não deixaremos quebrar.
Uma rajada de abraços. Até para o ano, onde o Carlos Lopes, o Torres e o Barros decidirem.
Lourinhã, 13 de outubro de 2018
Nota: Palavras ontem ditas no almoço anual, com alterações que o improviso comporta, aos sobreviventes da guerra colonial, do BCAÇ. 1936.
Ano após ano, todos os que podemos, dos que restamos, voltamos neste mês de outubro ao encontro dos que, em 11 de outubro de 1967, saímos do Cais de Alcântara para Catur e Malapísia, para participar na mais injusta e inútil das guerras onde a ditadura que aqui nos oprimia jogou a sobrevivência, para terminar, sem honra nem glória, numa madrugada de Abril.
Há meio século aproximávamo-nos do meio da comissão e tínhamos já o nosso quinhão de sofrimento e angústia, de privações e revolta, de saudade e amargura.
Éramos cerca de 300 homens entre mais de meio milhão de desterrados, ao longo de 13 anos, para os três teatros de guerra, Angola, Guiné e Moçambique. Estivemos longe da Pátria 26 longos e dolorosos meses, para voltarmos alguns menos dos que fomos, para trazer dentro de nós a guerra que não mais nos largou.
É justo recordar o Ti Luís Machambeiro, o saudoso coronel Vilela, e o major Beirão que a democracia fez general, que impuseram o humanismo e a ética que impediram atos de violência sobre prisioneiros e nos pouparam aos traumas que torturam muitos jovens de então. Graças a eles, não temos de que nos envergonhar, não juntámos ao sofrimento o remorso da impiedade gratuita infligida aos que ali viviam há séculos por pleno direito.
Do ambiente hostil, da revolta comum, de sofrimento partilhado, nasceram os laços que nos unem, a sólida amizade da família que fomos, da única que aí tivemos, laços que o tempo preservou, afetos que despertam e se reforçam em cada novo encontro que todos os anos nos reúne.
E que raio de saudade nos impele para estarmos aqui! Que generosidade a das mulheres, filhos e netos, que nos acompanham! Que paciência a do Torres, Barros e Carlos Lopes para prepararem esta reunião onde vimos recordar os mortos que lá deixámos, com a saudade que não se apaga, e procurar os vivos que restamos na imensa paixão da vida e no enorme prazer de encontrar nos septuagenários de hoje os jovens de há meio século!
Na impossibilidade de todos dizerem a cada um o que gostariam, aceito a incumbência de a todos saudar, e muito especialmente a quem nos acompanha, de transmitir o abraço fraterno de quem um dia descobriu dentro dos camuflados toda a família que lhe coube, durante mais de dois anos, em Malapísia e Catur.
Temos consciência de que, sem qualquer um de nós, ficam mais pobres estes encontros. Por isso, viremos sempre procurar os que puderem vir, mesmo quando formos poucos, até sermos os últimos. Hoje e sempre, nos anos que ainda houver, recordaremos comovidamente os que pereceram em Catur e Malapísia e os que todos os anos partem, os que vão saltando da viatura da vida nas curvas da picada onde derrapamos.
Na alegria de hoje, na felicidade deste encontro, termino com palavras idênticas às que há anos, não sei quantos, proferi sobre o navio Vera Cruz, que nos levou e trouxe: «ficaram dele estas amarras que ainda hoje nos ligam, amarras que o medo e a revolta robusteceram, que resistem aos temporais da vida porque são fortes os laços nos unem e é firme o cais da fraternidade a que se prendem».
Meus caros camaradas e amigos, reitero as saudações às famílias de cada um de vós que se juntaram à família que somos, nesta cadeia de afetos que não deixaremos quebrar.
Uma rajada de abraços. Até para o ano, onde o Carlos Lopes, o Torres e o Barros decidirem.
Lourinhã, 13 de outubro de 2018
Nota: Palavras ontem ditas no almoço anual, com alterações que o improviso comporta, aos sobreviventes da guerra colonial, do BCAÇ. 1936.
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