BRASIL: uma ‘República Moderna’ ou o regresso a 1964?

O Estado brasileiro é constitucionalmente indissolúvel. Está definido como uma ‘União’ com um território e fronteiras praticamente desenhados desde os tempos coloniais (ou se quisermos ‘imperiais’). A ‘nação brasileira’ (existirá mesmo?) foi decididamente posta à prova perante os mais recentes resultados eleitorais. Desenha-se um País fraturado transversalmente entre o Norte (Nordeste) e o Sul (e sudeste).

As recentes eleições presidenciais brasileiras trouxeram à tona profundas fissuras na coesão nacional brasileira.
Fissuras políticas com uma base muito divergente, específica e geográfica que traduzem profundas diferenças económicas, sociais e até culturais. Podem ser comprimidas e expressas num rudimentar mapa de distribuição da riqueza.
Entre o nordeste pobre, atrasado e sertanejo e o Sul desenvolvido, rico e elitista existem diversos matizes mas a fratura tornou-se demasiado evidente para ser ignorada. Todavia, o item mais significativo dessas diferenças é o índice de desigualdade. Uma análise comparativa entre o rendimento per capita (e de desenvolvimento) nos estados do Sul como o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná e outros do Nordeste (Ceará, Maranhão, Sergipe, Alagoas, etc.) é demolidora. Estilhaça qualquer conceito de União e seria bom que as recentes fraturas eleitorais não tenham consequências separatistas.

Outros índices que integram o painel do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) como sejam a esperança de vida, a taxa de alfabetização, volume de matrículas no ensino básico, médio e superior só confirmam as profundas assimetrias humanas, económicas e sociais no Brasil. Por outro lado, os indicadores do desenvolvimento económico analisados Estado a Estado da União não só confirmam este impressionante desfasamento como são verdadeiramente impressionantes.
Estas circunstâncias genéricas influenciaram a 1ª. volta das presidenciais brasileiras. Os ânimos estão exaltados perante a crise larvar do sistema político, a ‘praga da corrupção’ embota o discernimento do presente e do futuro e nada garante que estes fatores não sejam determinantes ou joguem um papel decisivo na 2ª. volta das presidenciais brasileiras.

Pouco ou nada se falou na campanha presidencial sobre questões económicas. A Direita desviou o debate para a segurança e recheou-o com laivos de discriminação, racismo, sexismo e homofobia enchendo assim o espaço mediático e inundando as redes sociais. O que vagamente se sabe - em termos económicos - é que Bolsonaro adotou um programa neoliberal, concebido por um velho guru no ofício, o banqueiro Paulo Guedes, dileto discípulo da Escola de Chicago, embora o candidato propriamente dito, com toda a probabilidade, não seja capaz discorrer sobre os itens deste confuso plano. A imagem de impreparação que transmite é olimpicamente avassaladora. 
O programa de Bolsonaro – o pouco que se conhece - é o recorrente decalque dos diktats oriundos da Escola de Chicago: privatização das empresas estatais (um ‘solução final’ para o problema da Petrobras), o desmantelamento do Estado social e a habitual e abrangente descida de impostos que contemplará prioritariamente os mais ricos, isto é, estão os brasileiros confrontados com a desgastada lógica de ‘menos Estado, melhor Estado’.

O enfoque eleitoral foi desviado para questões de segurança e a promoção de uma ‘pacificação musculada’ das tensões sociais existentes. A proposta política de Bolsonaro pretende ir ao encontro de sentimentos ‘populares’, mas contorna as causas próximas e remotas dos problemas.
Como causas remotas temos o tipo de desenvolvimento conseguido durante a ditadura militar – de que Bolsonaro é um fervoroso adepto – e que enriqueceu uns poucos à custa do empobrecimento de muitos. Por outro lado, as causas próximas recaem sobre o regime democrático saído da Constituição de 1988 que, a breve trecho, revelou manifestos aspetos de ‘ingovernabilidade’, que o tempo só tem vindo a agravar.

Bolsonaro desenvolve perante esta situação uma ‘santa aliança’. Conjuga um nebuloso compromisso com as casernas, uma inflexão económica neoliberalizante, associada a uma degradante insensibilidade social, um pouco em conformidade com o icónico quadro de deitar fora a água suja do banho com o bebé lá dentro. E esta opção sendo politicamente ultraconservadora e reacionária é, para além da brusca inflexão que integra, desastrosa (fatal) para o regime, já que revelando uma subjacente postura antidemocrática, tende a acionar mecanismos de rutura, no ‘estilo boomerang’, em relação a democracia, abrindo o caminho ao regresso a soluções ditatoriais, com os militares atuando nos bastidores, o aplauso explícito, por exemplo, da ‘bancada parlamentar do agronegócio’, a tenebrosa promoção das igrejas evangélicas (nomeadamente da IURD) e, ainda, uma discreta mas decisiva anuência dos meios financeiros (ver a reação bolsista aos resultados da 1ª. volta).

É curioso o percurso partidário de Jair Bolsonaro já que mostra longa adaptabilidade ao sistema e um aproveitador de marés. Começa em 1988 na democracia-cristã (PDC) e rapidamente alinha na fundação do Partido Progressista Renovador (PPR). Defende publicamente o encerramento do Congresso Nacional mas apesar de tudo mantem-se na lógica do sistema, continua a usufruir do seu lugar na Camara de Deputados e, de rompante, muda-se para o Partido Progressista Brasileiro (PPB). Adiante - em 2002 - enceta uma dança partidária e faz a transumância do PPB para o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e, em 2005, filia-se (durante poucos meses) no Partido da Frente Liberal (PFL) em trânsito para o Partido Progressista (PP), ambos com ligações remotas à ditadura militar. Acabou no Partido Social Liberal (PSL) que, em plena crise interna, o acolheu para a candidatura presidencial.
Os vários epítetos ‘progressistas’ - que fazem parte do trânsito partidário de Bolsonaro - seriam hilariantes se não fossem dramáticos e não demonstrassem uma total perversão política e um deambular semântico por alinhados (alinhavados) em pseudo-ideologias para esconder interesses económicos e financeiros . O ‘camaleonismo partidário’ permitiu-lhe sobreviver como deputado federal desde 1990 até ao presente. Verdadeiramente notável como se apresenta como sendo um neófito do sistema.

O PT deixou-se enrolar nestas turvas águas e foi incapaz de anunciar programas alternativos. A ‘crise brasileira’, decorrente do condicionamento estrangulador imposto pelos G7 aos países ditos emergentes (os BRIC’s do G20) é ditada pelos conluios globalizantes caiu fora do controlo das instituições democráticas brasileiras. Pior, internamente os problemas foram-se exacerbando após o golpe contra Dilma. Estas mudanças cada vez mais incontroláveis teriam, necessariamente, de provocar reflexões (inflexões) no interior do PT e gerar novas propostas de intervenção política, económicas e sociais.

Os brasileiros sentem na pele a crise económica e social manifestando-se nas ruas que ‘mais do mesmo’ já não serve. As conquistas obtidas pela governação Lula – que retirou milhões de brasileiros da pobreza – estão ameaçadas de uma rápida reversão facto que ficou bem patente na governação golpista de Michel Temer. Ora, Temer não caiu do céu. Integrou a ‘chapa’ de eleição de Dilma Roussef, num ‘calculismo eleitoralista’ que se viria mais tarde a revelar-se politicamente assassino. Haveria a necessidade de retratar-se destas alianças e recentrar o PT na sua matriz política e promover alianças ‘progressistas’ e manter uma postura ética diferenciadora que afastasse o partido dos esquemas de corrupção e o relançasse no aprofundamento da sua relação com os mais pobres, isto é, os eternos perdedores de todo o tipo de crises económicas e sociais.

É visível que o PT – durante os anos de governação passados – aceitou envolver-se numa teia de corrupções em cadeia envolvendo o díspar ‘arco parlamentar de apoio’, indispensável para construir uma maioria capaz d governar de que o ‘Mensalão’ é um dos exemplos, mas não o único. Foi o preço que aceitou pagar para executar as suas políticas, nomeadamente, as sociais, como por exemplo, a emblemática ‘Bolsa Família’. Não foi uma escolha feliz – nem ideologicamente, nem no terreno ético - já que essa opção (pretensamente pragmática) o atolou no pântano de corrupção que infesta, de alto a baixo, a política brasileira.

Independentemente do mérito das políticas sociais do ‘lulismo’ – que as classes mais desfavorecidas conheceram – houve uma negligente contemporização com a escabrosa situação político-partidária reinante. A reforma do sistema político-partidário era imperiosa para retirar uma imensidão de brasileiros da pobreza mas foi adiada ou, mesmo, abandonada.
Hoje, o PT, está a pagar por essa neglicência e, na realidade, as conquistas obtidas tornaram-se efémeras já com Temer e serão futuramente espezinhadas por Bolsonaro, se vencer as eleições, como tudo indica.
Por outro lado, Fernando Haddad candidato presidencial de recurso do PT, após o impedimento de Lula da Silva, pouco ou nada expôs sobre objetivos económicos e as suas intervenções incidiram fundamentalmente sobre o Estado Social, nomeadamente acerca da ‘Bolsa Família’ um projeto ameaçado (por Bolsonaro) e restou-lhe orbitar à volta de uma ideia passada. As posições económicas de Haddad são muito genéricas podem ser consubstanciadas na vaga asserção: ‘Mais Lula, menos Dilma’.

Mas esta tardia inversão política – depois das deambulações de Dilma -  isto é o regresso ao ‘lulismo’ mais ortodoxo não chega para captar os votos ao Centro – necessários para a campanha de Haddad  porque os problemas económicos brasileiros são eminentemente estruturais e dificilmente conciliáveis com a dispersão (variedade) de interesses representados no Congresso.
 
O que não foi expresso na 1ª. volta dificilmente poderá assomar como sendo importante na 2ª. volta, que velozmente se aproxima, já que falta tempo para escalpelizar situações e concertar respostas, correndo o risco de, mais uma vez, ficar ‘acorrentado’ ao golpismo da Direita.
 
O miserável exemplo de Fernando Henriques Cardoso face à ‘ameaça Bolsonaro’ mostra que o ‘fenómeno Temer’ não foi um acaso, nem um incidente, mas uma terrível inevitabilidade face à confusão instalada por um sistema – também - corrupto no campo ideológico. A manutenção de Fernando Henriques Cardoso como mentor do PSDB se não fosse um dramático espezinhamento e a total perversão da história ideologia política merecia figurar no anedotário satírico dos oportunistas que usam a ('enferrujada' conforme o próprio afirmou) 'porta giratória' da política para esmagar qualquer resquício de decência, coerência e ética (republicana, pressupõe-se).
 
Por outro lado, o programa do PT deixa a corrupção para um 2º. plano o que é, nas circunstancias atuais, um clamoroso erro político.
Os marginalizados da redistribuição da riqueza e os ostracizados do desenvolvimento, que estão espalhados por todo o Brasil mas que maioritariamente vivem no imenso Nordeste nada podem esperar em termos de futuro, mas permanecem (ainda) fiéis ao ‘lulismo’. Difícil será transferir essa fidelidade do histórico dirigente, acossado pela Direita e nas mãos de uma máquina judicial com notória agenda política, para o PT.
 
Na realidade, a criação de uma ‘frente republicana’, contra a ameaça à democracia que Bolsonaro efetivamente representa, passa pela construção de largos consensos políticos, sociais e económicos muito difíceis de tecer no caótico quadro partidário brasileiro, pejado de interesses pessoais, familiares e/ou de grupo e, para além disso, cultivador de messiânicos ‘ódios de estimação’ contra tudo o que represente progresso.
A Câmara de Deputados deverá sair (após a 2º. volta eleitoral) ainda mais fragmentada do que a anterior. Dos 25 partidos que estavam aí representados deverão passar a ser 30. De mal passamos a pior. Isto é, o Brasil permanece ‘democraticamente’ cada vez mais ingovernável. E a ‘ingovernabilidade’ é o pasto onde crescem todas as corrupções, as demagogias, os populismos e os fascismos.

Não há inocentes entre os políticos brasileiros e o que as presentes eleições mostram é a capacidade que a Direita – seja ultra ou aparentemente moderada – tem em travestir a realidade, cavalgar despudoradamente derivas populistas e, finalmente, ser a ‘antecâmara festiva’ de regimes fascistas.
A ‘questão brasileira’ será muito mais vasta do que aparenta. As múltiplas Repúblicas brasileiras têm ao longo da história sofrido diversas mutações.
Desde a ‘Velha República’ proclamada em 1889 pelos militares mas politicamente oligárquica (‘política café com leite’), passando pela ‘Época Vargas’ (1930-45) com os matizes ditatoriais, constitucionalistas e do Estado Novo e depois pela República Populista (doutrina em voga na América Latina), de 1945 a 64 e que, quando enfileirou pela esquerda, desembocou numa Ditadura Militar que perdurou mais de 20 anos (até 1985). É depois destes sobressaltos que nasce o presente período republicano consagrado na Constituição de 1988, conhecido como ‘República Nova’ (como a designou Tancredo Neves).

Na realidade a ‘República Nova’ parece ter esgotado as suas potencialidades de atuação política e partidária no Brasil. Faltará criar uma ‘República Moderna’. Uma tarefa difícil que ultrapassa o vigente sistema político e constitucional e não cujo ónus não pode (nem deve) ser endossado ou assacado exclusivamente ao PT. O PT tem uma quota-parte na degradação do regime mas o sistema político-partidário vigente não pode ser ignorado e muito menos absolvido de estar com a 'corrupção política' e o 'desvario partidário' ', i. e., no cerne da presente 'questão brasileira' que, declaradamente e despudoradamente, questiona o regime.
 
Mas uma coisa é certa: se existe alguém incapacitado para fazer mudanças será Jair Bolsonaro que mais não promete do que um desastroso regresso a 1964.

Comentários

Quando se quis exterminar os Cátaros,o oficial comandante da força atacante mandou perguntar ao Papa,seu chefe,como poderia distinguir os bons cristãos, que também existiam em Albi,dos cismáticos.
Matai-os a todos! Deus saberá distinguir os seus,à porta do Paraíso!
Que não surja igual doutrina,no Brasil.

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