VENEZUELA: o que estará a cair de maduro e o novo que é mais do mesmo…

Depois de alguns anos de ‘chavismo’ a Venezuela tem assistido nos últimos dias ao desenrolar de tenebrosas ‘jogadas’. Uma delas a mais divulgada mostra Juan Guaidó a resolver antecipar uma cartada com o objetivo de precipitar a queda de Maduro. Além de antecipada a jogada foi de uma irresponsabilidade tremenda e de um amadorismo infantil.

A situação interna na Venezuela é complexa e difícil havendo múltiplas questões em aberto na sociedade que o actual regime (bolivariano) não conseguiu resolver já que foi afectado por múltiplos bloqueios e, sejamos, claros, por boicotes, mas, também, por erros políticos, e acima de tudo, porque tem improvisado demasiado e planificado pouco. 

Na verdade, desde a instauração do presente regime em 1998 que o ‘bolivarianismo inicial de Hugo Chávez’ (o MBR 200 inicial e posteriormente o Movimento V República) tem sofrido vários percalços evolutivos, nem todos eles lineares e límpidos. Simon Bolivar continua a ser o referencial histórico da independência plena e soberana do povo venezuelano e um marco anti-imperialista intemporal – não conotável com a Esquerda - sendo politicamente significativo que o autodenominado presidente interino Juan Guaidó, nunca o evoque.

Para entender o ‘bolivarianismo’ é necessário recuar ao ‘Caracazo’ (Fevereiro 1989) onde as reivindicações e paralisações levadas a cabo por uma classe trabalhadora explorada e desorganizada levaram a uma cruel repressão oriunda de um Estado rico mas, no mínimo, injusto e negligente, perante o modelo de redistribuição da riqueza em favor de uma oligarquia venal e corrupta.
Esta luta reivindicativa prolonga-se com altos e baixos durante a década de 90 mas só terá expressão política concreta no ‘chavismo’, isto é, em 1999, com o ‘Movimento V República’ (MVR).

A Constituição de 1999, decorrente da eleição de Hugo Chávez, contou com uma ampla participação popular (os movimentos sociais, organizações políticas e ONG - a dita ‘sociedade civil’ - incorporaram mais de 300 propostas no texto constitucional).

Este ‘ímpeto revolucionário’ foi esmorecendo e o regime caiu nas mãos de um grupo ‘bolivaro-burguês’ de matriz castrense, com evidente desvalorização da componente popular.

O que hoje se está a verificar e tem pelo caminho alguns paladinos que dizem compreender o regime chavista mas rejeitam Maduro não passa de um engano ideológico para iludir a natureza do regime e que decorre do falhanço da degradada relação entre o Governo e as massas populares à custa da deterioração social e de uma impressionante queda do PIB (mais de 40% em 4 anos).

Na verdade, o ‘chavismo’ enquanto manifestação nacionalista e patriótica, inspirado no exemplo libertador de Simon Bolivar, é mais uma expressão do variegado ‘socialismo sul-americano’ e foi, desde o início, objecto de múltiplos ataques dos círculos mais conservadores da sociedade venezuelana em conjugação com interesses norte-americanos, sendo o de maior expressão e violência o ‘golpe de 2002’, que tem como rastilho uma greve (patronal) no complexo industrial petrolífero.
 
Mas o ‘chavismo’ cedo começou a evidenciar contradições internas e a contornar os conflitos de classe através da intervenção política de organizações autónomas e populares (Círculos Bolivarianos, Mesas Técnicas de Água, Missões Sociais, Conselhos Comunais, etc.).

O acantonamento destas organizações populares e de alguns partidos de Esquerda num Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV) foi um processo político inacabado sem um completo impacto unificador e revelou um lastro doutrinário fluido. Por exemplo: o Partido Comunista da Venezuela ficou de fora (embora sempre tenha apoiado Chávez e posteriormente Maduro) continuando a trabalhar nas organizações de base mas foi notório o distanciamento da cúpula chavista dirigente, dominada por basismos inocentes e incoerentes e ainda pela ‘cultura de caserna’ à margem das iniciativas de organizações políticas e sociais dos trabalhadores.
 
A Direita atribui os problemas colectados pelo Governo de Maduro - como a crise alimentar, a hiperinflação, a rotura dos serviços médicos e farmacêuticos, etc. - à existência e ineficácia de um regime socialista ou, para os mais radicais, comunista, quando, na verdade, esses problemas só existirão porque não houve capacidade de erguer um modelo socialista na política, na economia, na sociedade e na cultura. A crise não é do socialismo mas da sua não-existência.
 
Pensar que a conservação - relativamente intacta - de um modelo económico que é, no essencial, um resquício do histórico ‘pacto de Punto Fijo’ (1958), celebrado entre a Direita e o Centro liberal, e assente numa iníqua repartição dos proventos das rendas do petróleo e da bacia mineira do Orinoco – ambos os bens produtivos tradicionais que ‘constroem’ o PIB venezuelano - agora com outros protagonistas (supostamente de Esquerda), traria, sem fazer mais nada, algo de inovador, de mais justo, sustentável e repartido foi um ledo e cego engano, que o actual regime venezuelano está, no presente, a ser confrontado.
 
As rendas petrolíferas e os proventos do arco mineiro do Orinoco serviram - enquanto os preços do barril de petróleo estiveram em alta - para promover respostas sociais amplas e diversificadas que atenuaram a pobreza e a fome endémicas dentro de um espírito (quase) místico, identificável como uma vertente política da missionária ‘Teologia da Libertação’ mas, para os venezuelanos e venezuelanas, esta via (chavista) encerrava no seu seio um erro de palmatória, isto é, oferecendo peixe para o jantar de hoje, ou de ontem, mas não fornecendo a cana de pesca e a capacidade para pescar, sempre que necessário ou em qualquer circunstância.

A mistura entre um ‘nasserismo tropical’ sem grande clareza ideológica e um nacionalismo hispano-americano, exposto por Bolivar na Carta da Jamaica, em 1815, e em certa medida retomado pelo peronismo-zapatismo define, de certo modo, o complexo ‘movimento chavista’ conotado com uma Esquerda latino-americana. E o principal problema desta Esquerda – mas não exclusivo dela - será separar, ou pelo menos distinguir, o movimento reivindicativo popular adoptado e apoiado pelos militares, do vulgar caudilhismo, do populismo desbragado. Faltou encarar e colocar, no desenvolvimento do processo político, o povo como sujeito e objecto da História das Nações.
 
A experiência de ‘gestão socialista chavista’ de uma economia estruturalmente privada (como é a venezuelana) onde a nacionalização da indústria petrolífera não basta, revela-se, neste momento, trágica em termos económicos e sociais e aparece à luz do dia, nos meios de comunicação social, como o exemplo de um ‘drama humanitário’ decorrente do regime político.
Mas, ao contrário das ‘boutades’ que Direita repetidamente propala, nada disto tem a ver com uma ‘economia socialista’ que tem um modelo próprio de propriedade, de produção, de distribuição e de desenvolvimento (não é preciso reinventar). A responsabilidade do que está a acontecer na Venezuela não pode ser atribuída ao ‘socialismo’ mas antes aos erros e insuficiências do ‘chavismo’ e à sua confusa base ideológica, isto é, um assunto bem diferente.

O regime bolivariano venezuelano muito dificilmente conseguirá resistir ao cerco que os EUA estão apostados em desenvolver e que está a ser orquestrado como um novo passo na estratégia de intervenção energética mundial, gizada pela Administração Trump, na sequência dos desaires do Médio Oriente. É notoriamente uma situação baseada em contextos geoestratégicos hegemonistas e bastante desigual em termos de meios disponíveis. Será - como todos já pressentimos - uma questão de tempo.

Todavia o amadorismo não reside só em Guaidó que pouco mais vai para além do desempenho de um miserável papel de títere, mas foi exibido, também, pela Administração Trump em declarações produzidas ao mais alto nível (incluindo o Secretário de Estado Mike Pompeo) e na descarada, demolidora e espalhafatosa intromissão no contexto da política interna venezuelana que as posições da Administração norte-americana já nem se preocupam em disfarçar.
Quando John Bolton (conselheiro de Segurança Nacional de Donald Trump) tece considerações acerca da crise venezuelana e invoca subliminarmente a ‘Doutrina Monroe’ e, sendo assim, continuar a falar e pensar em termos soberanistas (bolivarianos) tornou-se uma incongruência. Todos conhecemos o pensamento de um dos ‘pais fundadores dos EUA’, Thomas Jefferson, de que: “A América tem um hemisfério para si mesma…” (o que traduzindo em miúdos significa que o Continente americano é o ‘quintal dos yankees’).

A conturbada situação política venezuelana não resistirá por muito tempo ao stress circundante instalado e orquestrado internacionalmente - e mais uma vez -liderado pelos EUA.
Uma saída verosímil e mais consentânea com as ‘características venezuelanas’ poderá ser o desencadear um ‘golpe de Estado clássico’ que leve ao poder uma Junta Militar e consequentemente a um período de ditadura, politicamente nacionalista, socialmente repressiva mas, no terreno económico, em consonância com interesses norte-americanos.
Juan Guaidó depois do fracasso da imposição da ajuda humanitária e agora da ‘Operación Libertad’ deixou de ser útil à política externa americana e deverá sair de cena pela porta baixa. Guaidó é demasiado frágil e inexperiente para acompanhar ou liderar a ‘solução musculada’ que se desenha na Venezuela.

O próximo passo na América do Sul – mais uma vez – poderá ser o regresso a um ‘período negro’ de submissão imperial (sucedâneo do colonialismo), promovendo-se o revisitar dos ‘velhos tempos’, que pontificaram ao longo de todo o século XX, em que as intervenções dos EUA, por exemplo, na América Central e espaço caribenho – restringindo-nos às militares e diretas - se sucederam umas atrás das outras: Cuba (1898 a 1902, 1906-9, 1917); Panamá (1903, 1989); Nicarágua (1910, 1912- 25, 1927-33); México (1914); Haiti (1915-34, 1994); República Dominicana (1916-24, 1965-66); Guatemala (1954) e Granada (1983).

O ciclo reversivo que está a ser paulatinamente instalado na América Central e do Sul é uma consequência direta das mudanças políticas verificadas em Washington e a sua expressão facial resume-se numa palavra – Trump.
Nos anos da ‘era trumpista’ é possível quantificar esta movimentação e verificar que, há 4 anos, em 12 países da América do Sul, só 3 países tinham um governo de Direita. Hoje, são a maioria. Nos grandes países sul-americanos – Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai, Peru - verifica-se uma desenfreada cavalgada de opções de esquerda para governações de Direita ou, até, populistas de Extrema-Direita (Bolsonaro).

O cerco à Venezuela representa mais uma etapa deste ciclo. A seguir - como já todos entendemos - segue-se a Nicarágua e, claro está, Cuba que é um assunto habitué e recorrente da política externa norte-americana, há mais de meio século.

Comentários

Jaime Santos disse…
A desculpa para mais um 'falhanço socialista' é de que o socialismo nunca foi tentado. Pois, mas se assim é, todos os que dele se reclamam andam sempre a fazer asneiras...

Qualquer sistema político que não reconheça o carácter falível da ação política e a natureza provisória das instituições está condenado ao falhanço...

As sociedades mais desenvolvidas do planeta são aquelas que conjugaram o capitalismo com Estados Sociais fortes e não alinharam em modelos de coletivização. O problema não está no capitalismo ser ou não profundamente injusto, que o é, está em que as alternativas a ele se revelaram na prática todas um desastre. Mais, se o capitalismo passa sem a democracia, esta não parece ser capaz de durar em sociedades não capitalistas.

O triste resultado das experiências com Governos de Esquerda na América Latina é de que a crise económica, a incompetência desses Governos e a corrupção no seu seio estão a provocar uma reação profunda que leva ao Poder Governos de Direita de cariz autoritário.

E o PCP e o BE ainda defendem semelhantes soluções entre nós! Prefiro a social-democracia envergonhada de um PS ao colapso económico a que se seguirá naturalmente um regresso em força da Direita. Ou ninguém se lembra de que foram também as dificuldades económicas que mataram a 1ª República, para além do seu radicalismo, com as lutas entre republicanos e monárquicos e as lutas intestimas no campo dos primeiros?
e-pá! disse…
Jaime Santos:

É verdade que os sucessivos falhanços de tentativas socialistas - em todo o lado - devem levar a uma séria ponderação e a recolher ensinamentos.
Poderemos, por exemplo, ter a noção histórica de quanto tempo demorou a transição do feudalismo para o capitalismo e os seus múltiplos sobressaltos que começam no século XII para só se consolidarem no séc. XVI., em que os servos passaram a assalariados.

O socialismo ao contrário do que sugere tem sido tentado (ninguém pode negar essa realidade) mas o se questiona é, em primeiro lugar, o modelo ensaiado, logo de seguida, os métodos utilizados e, finalmente, os resultados.
O primeiro estado socialista (a URSS) falhou - toda a gente o sabe - mas condenar o modelo ideológico pelo número de falhanços não passa de uma contabilidade enviesada. Porque, aparentemente, as tentativas socialistas surgiram exatamente onde o sistema capitalista falhou. Como, do mesmo modo, o sistema capitalista começou quando o feudalismo falhou.

Mas a análise dos sistemas e ideologias não pode ser tão dicotómica e devemos ter a noção de que o 'processo histórico' continua a sua imparável marcha.
Jaime Santos disse…
Eu estava a ser irónico. Claro que o socialismo foi tentado e falhou. Mas tipicamente a desculpa é de que aquilo que falhou não era socialismo.

Pois, não se percebe exatamente o que o socialismo deva ser para que conjugue as liberdades políticas alcançadas apesar de tudo nas sociedades capitalistas, com uma verdadeira democracia económica e social. Um sistema que combine uma Economia de Mercado com o cooperativismo industrial? Não sabemos.

O que sabemos é que a coletivização da Economia à luz do modelo soviético (ou em menor grau de uma Economia Mista) foi tentada e não resultou. E não falhou suavemente, mas com um estrondo, deixando um legado de miséria, autoritarismo e destruição ambiental. Isto deveria ser óbvio para quem reconhece que esse modelo só herda do capitalismo aquilo que ele tem de pior, o Monopólio.

As experiências de nacionalismo dito progressista que se seguiram às lutas anti-imperialistas também falharam, tendo transformado as novas nações livres em modelos de cleptocracia. O exemplo venezuelano é simplesmente o último desta senda de desastres...

E o 'processo histórico' não existe. Quem olhasse do ano 117 DC não imaginaria que o Império Romano, então no seu auge, iria dar origem a sociedades feudais quatrocentos ou quinhentos anos mais tarde. Os socialistas sofrem de um crença na teleologia do processo histórico que herdaram do Cristianismo, o que custa a crer em pessoas que se dizem descrentes e céticas. A História também anda para trás.

O que temos que, antes de tudo, como dizia Tony Judt pouco antes de morrer, é evitar mundos piores. Pelo que a prudência e a aceitação de que simplesmente ainda não sabemos se existe uma alternativa viável ao capitalismo se recomendam... Essas alternativas devem ser tentadas em experiências de pequena escala primeiro, dentro do capitalismo.

O modelo chavista, esse é que deve definitivamente ser atirado para o caixote do lixo da História... Enquanto estes Países não perceberem que não existe para já uma alternativa à Social-Democracia, estão condenados, qual Sísifo, a repetir os mesmos erros...
e-pá! disse…
Jaime Santos:

A atitude negacionista perante o 'processo histórico' lembra-me o 'Fim da História e o Último Homem' de Fukuyama...
E, como a realidade tem vindo a demonstrar, o filósofo nipo-americano estava equivocado.
Jaime Santos disse…
A minha atitude relativamente ao processo histórico não poderia estar mais longe da de Fukuyama, que, essa sim, se assemelha ao otimismo marxista, mas com o liberalismo a substituir o comunismo como destino final da humanidade.

O que eu quis dizer é que não acredito que a História vai para lugar algum. O devir de Heráclito, esse estará connosco até ao fim dos tempos...
e-pá! disse…
Jaime Santos:

Qualquer tentativa de entrosar o pensamento de Fukuyama, ou quem diz o pensamento diz o otimismo, com o marxismo, é uma posição perfeitamente oblíqua.
Jaime Santos disse…
Depende do significado que quiser atribuir à palavra 'oblíquo'. Espero que não seja um ataque pessoal...

Não quero obviamente entrosar o pensamento de Fukuyama com o Marxismo, não poderiam estar mais longe um do outro no tipo de sociedades que ele ou os Marxistas veem como ideais.

Mas digo-lhe uma coisa. Pelo menos, Fukuyama preocupa-se com a solidez das instituições (tem estudado o sua evolução), não é ingénuo.

Marx tem claro razão, na minha modesta opinião, relativamente à centralidade do trabalho na realização do indivíduo e na sua libertação da alienação que é o modo de produção capitalista, mas cai no pecado dos socialistas, ou seja, não se preocupa com a questão da proteção da liberdade política, concentra toda a sua energia nas questões económicas. Este é um ponto interessante, levantado por Axel Honneth em obra recente.

Se o sistema político liberal tem conseguido sobreviver mau grado as vicissitudes, a sua solidez deriva em grande medida do ceticismo dos filósofos iluministas relativamente à natureza humana e à necessidade dos homens serem constrangidos nas suas ações pela força das instituições que constituem o Estado.

Os Marxistas acreditam por outro lado que a natureza humana é moldável, coisa que eu considero que não é. E se as suas experiências não resultaram, 'it is because they weren't trying hard enough...'

Fukuyama, ao menos, tem andado a rever as suas teses face aos falhanços...

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