Eleições em Espanha: O ‘albergue espanhol’ teima em persistir…
Existe um grande e variegado movimento independentista catalão que se mostra nas ruas, emocionado e determinado, mas sem um programa político pensado, elaborado e o mais importante para a causa, com características unitárias.
Por outro lado, a Espanha pós-franquista, não está preparada para aceitar estas movimentações autonomistas com base numa conceção indefensável que rejeita o modelo de um Estado de Nações e se acantona na ‘sombra agregadora’ (?) dos Bourbons, tecida por Franco, que não são tão consensuais quanto se julga e divulga. Vejam-se as sucessivas ‘guerras carlistas’ durante o século XIX que conduziram à implantação da efémera I República Espanhola (1873-74) e o Pacto de S. Sebastian (1930) que agrupa os republicanos (catalães, galegos, bascos) e está na génese da II República Espanhola.
Para que não nos iludamos o ‘nacionalismo catalão’ não é um argumento de Esquerda como aparentemente tem sido divulgado mas antes uma longa aspiração popular que passou por diversas mãos.
Tudo começa muito longe, em 1714, com o desfecho da guerra da Sucessão entre as famílias Bourbon e de Habsburgo. A Catalunha que se tinha posicionado ao lado da casa de Habsburgo por várias razões mas fundamentalmente porque esse caminho permitia-lhe distanciar-se da dinastia filipina espanhola (Bourbon) que sempre a ‘ocupou’ e oprimiu.
Catalunha e Castela (vamos por aí para simplificar), desde o século XVII, que nunca tiveram um bom relacionamento. A ‘revolta dos ceifeiros’ (‘segadors’, em catalão), ocorrida em 1640 (uma data chave também para Portugal), é um marco importante da luta catalã pela sua identidade, enquanto Nação e ainda hoje inspira o hino nacional catalão.
Na História Contemporânea (a Catalunha tem para além disso um longo trajecto histórico) o futuro começa com a proclamação da República Catalã, por Francesc Macià, em 14 de Abril de 1931. Esta foi uma proclamação à boleia da II República Espanhola, de índole marcadamente federalista que as elites de Castela (e não propriamente o que agora se designa por ‘Espanha’) não aceitaram. A República Catalã foi mais um passo em falso violentamente travado pelo desfecho da guerra civil espanhola.
Quando morre Macià (1934), Lluís Companys, oriundo da Esquerda Republicana Catalã (ERC), sucede-lhe à frente da Generalitat (Governo Autonómico Catalão). De certa maneira a Catalunha estava a libertar-se de um conturbado período pré-republicano, isto é, da ditadura de Primo de Rivera (1923-30), para encurtar razões, um percursor do ideário franquista que martelava (impunha) a ‘exaltação de Castela’.
Franco, depois da ‘batalha do Ebro’, decide humilhar a Catalunha a quem já tinha retirado o estatuto de autonomia, promovido a repressão cultural, a proibição de falar catalão e enceta um período de perseguição e eliminação física dos autonomistas catalães, indo buscar Companys ao exílio em França, com a colaboração da Gestapo, para o mandar fuzilar em Montjuic, na periferia de Barcelona.
Durante o franquismo a Catalunha viveu a ferro e fogo e os ‘instintos autonómicos’ que subterraneamente conseguiram sobreviver só começaram a ganhar uma visível expressão com a morte do ditador e o início da fase de transição democrática.
A industrialização catalã – um pouco em contrabalanço do afundamento económico do País Basco envolvido também numa complexa e sangrenta luta autonomista – e, concomitantemente, o turismo, reabilitaram a nação catalã mas também são uma das causas próximas – as remotas são as históricas - do pretendido divórcio com a Espanha dominada pelas elites castelhanas e seus apêndices (Franco, por exemplo, era galego).
Isto é, a Catalunha passa a produzir quase um quarto do PIB e os mecanismos tributários vigentes bem como os redistributivos aumentam o distanciamento com Castela e incentivam os ímpetos de independência.
A constituição espanhola de 1978 reconhece a existência de ‘nacionalidades’ mas não consegue despir dos princípios centralizadores oriundos da unificação orquestrada pelos Reis Católicos, alimentada pelos Bourbons com guerras, sedições e traições e sempre contestada pela República que reconheceu as nacionalidades (e as nações) albergadas no conceito ‘Espanha’.
A unificação dos diferentes reinos (Leão, Castela, Aragão, Astúrias, Navarra, País Basco, etc.) dá-se sob o signo da ‘Reconquista’, um conceito eminentemente católico - beato e ‘contrarreformista’, para ser mais explícito -, muito próximo das cruzadas medievais, que começa por uma longa saga persecutória aos infiéis (mouros), coincidente com o fim da presença andaluz na Ibéria, para de imediato começar a perseguição aos judeus.
Hoje, nada destes pressupostos existem, a não ser na cabeça de alguns renitentes falangistas que encontram nesta unidade territorial, convergência política e na inquisitorial ‘bênção religiosa’ que criaram, a partir do século XV, as bases expansionistas justificativas para erguerem um ‘Império Espanhol’ (de que Filipe II foi um dos expoentes máximos) e se alimentou – enquanto perdurou - das ‘Américas Hispânicas’. A evolução mundial e as vicissitudes da História fez cair de podre esta conceção, mas a mesma ainda sobrevive no subconsciente de muitas mentalidades da Direita espanhola, essencialmente saudosistas, e portanto consideram-se deserdadas de um mítico espirito unificador falangista concitado à volta do grito ‘Viva España!’ e do hino ‘Cara ao Sol’ que ainda separa os espanhóis entre ‘vencedores’ e ‘vencidos’.
A visão fascista de considerar a Espanha um ‘todo unificado’ contrasta com ideia republicana – que não obrigatoriamente de Esquerda – de uma diversidade cultural e de nações (com ou sem integridade territorial). É nesta dicotomia que se debate a Espanha contemporânea.
Quando se realizam as primeiras eleições na Catalunha após a transição democrática é o partido de centro-Direita Convergência União (CiU) liderado por Jordi Pujol que conquista a Generalitat e assume o governo catalão de 1980 a 2003. Portanto, não é um sentimento de Esquerda, seja socialista, marxista ou até anarquista (que na Catalunha teve uma grande expressão), que renasce, mas uma questão cultural e identitária, para os catalães, ‘nacional’, que o franquismo não conseguiu eliminar e se manteve em hibernação durante os duros e difíceis tempos da ditadura. A coligação de partidos que, em Outubro 2017, governava a Catalunha a quando do referendo de 1-O, presidido por Carles Puigdemont, só por ignorância pode ser englobada na Esquerda ou mesmo num espectro político radical.
Passados tantos anos, desde a declaração de independência da Catalunha em 1934 – 85 anos! – Madrid continua a desperdiçar oportunidades e deixar o problema das diferentes identidades nacionais em suspenso e sem solução. A revogação do Estatuto Autonómico da Catalunha de 2006, amplamente aprovado por referendo popular, posteriormente contestado pelo PP de Rajoy e, finalmente, amputado, em 2010, pelo Tribunal Constitucional (um velho resquício sobrenadante do franquismo) que restringiu (e reescreveu) 41 artigos do Estatuto (no âmbito político e fiscal), entre eles o que considerava a Catalunha como uma Nação, é um exemplo acabado dos tractos de polé que a evolução e sedimentação autonómica das comunidades tem sido sujeita.
É difícil perceber se aquilo a que se chama ‘Espanha’ ainda vai a tempo de emendar a mão e olhar para o federalismo (com todas as complexidades que encerra) ou se o processo desencadeado por Rajoy (no seguimento da linha ultraconservadora de Aznar e da sua Fundación Institucional Española), com a aplicação do artº. 155º da Constituição Espanhola (que suprime o estatuto de Autonomia), criou sequelas definitivas que encaminham a resolução deste conflito (real, sublinhe-se) para outro tipo de confrontos. O problema base é saber (ou admitir) se a Catalunha é (ou não) uma Nação.
É sobre esta questão que os políticos espanhóis têm tido imensas dificuldades de discernimento que se refletem no presente. É moroso e difícil substituir ‘valores’ ultraconservadores como Deus, Pátria e Família por outros oriundos da Época Moderna (Revolução Francesa) como Igualdade, Fraternidade, Liberdade e Progresso.
A Espanha (mesmo a do pós-franquismo) ainda continua amarrada a conceções retrógradas como a do catolicismo beato e redutor que alimenta um rol de posturas (políticas, económicas, sociais e culturais) fundamentalmente antissocialistas mascaradas sob um vago conceito ‘soberanista’ (ultranacionalista) fonte inspirativa do pleno da Direita partidária espanhola (Vox, PP e Cidadanos).
A atual Esquerda espanhola (PSOE e Podemos) fala vagamente em federalismo e, pior, abdicou das convicções republicanas. O PSOE que, por exemplo em 1976, parecia acreditar no ‘federalismo’, mais como uma reação ao ultranacionalismo franquista do que por convicção, enredou-se na retórica da defesa ambígua de uma perspetiva de ‘nação plurinacional’, vem fazendo (desde os tempos de ‘transição democrática’) um caminho ínvio que levou o partido ignorar o federalismo e só a invocá-lo no programa político das presentes eleições como um marginal adorno para satisfazer o PS Catalão.
O trajeto federalista do PSOE é deveras sinuoso passando por assunções recheadas de dúvidas que motivaram avanços e recuos muitas vezes à volta de estéreis disputas como seja o ‘federalismo simétrico’ versus o ‘assimétrico’.
O mesmo se passa com o PSOE e o regime monárquico uma querela que atravessou o franquismo, isto é, desde o Pacto de San Juan de Luz (1948), firmado entre Gil-Robles e Prieto, onde os socialistas foram miseravelmente iludidos, para não dizer traídos. A convivência da Esquerda, nomeadamente a do PSOE, com a Monarquia está recheada de avanços e recuos táticos em que se manifesta laconicamente a preferência pela República para logo adiantar a ‘compatibilidade’ com a Monarquia. Na realidade, a dinastia Bourbom tornou-se parte do problema e nada contribui para a sua solução.
Regressando à Catalunha verificamos que Pedro Sanchez sob a pressão da Direita e Extrema-Direita tem tentado, nos últimos tempos, fazer uma ‘leitura política’ – e não exclusivamente legalista – do artº. 155º da Constituição Espanhola. Não é fácil, até porque a Constituição em vigor foi um compromisso histórico datado, para um período de transição democrática que, quer queiramos quer não, já caducou e, portanto, será necessário adaptar a Lei Fundamental à realidade presente e futura.
O impasse político espanhol tem raízes profundas, históricas e nacionais que, ao fim e ao cabo, definem todas nações e os regimes mas, no caso vertente, passa, obrigatoriamente, pela definição prévia e clarificação do modelo (de existência) das comunidades autonómicas que são ‘obrigadas’ a coexistem no atual e nitidamente desajustado Reino.
Enquanto a Espanha não conseguir resolver este candente problema o impasse manter-se-á e, por mais eleições que se realizem, o bloqueio político persistirá.
Não é mais possível resolver o ‘problema político espanhol’ sem questionar o regime nascido no período de transição do pós-franquismo. E este questionar tende a amplificar cada vez mais o seu âmbito indo a questões fundamentais como da Monarquia (reinstalada por Franco) até ao Estado plurinacional.
As condições políticas existentes no presente tornam este debate difícil e pesado. Nas recalcitrantes hostes populares sucedâneas ou órfãs do franquismo, que ainda influenciam a ‘política espanhola’, pesa ainda a ideia da ‘Grande Espanha’ – mimetizando destroçado o ‘Império Espanhol’ - como se não tivessem existido as invasões napoleónicas que liminarmente destruíram todas as veleidades imperiais (não só na Espanha como na Península).
Na realidade, a Espanha está concebida (politicamente) mais como um Estado pluriétnico – com o interregno repressivo do franquismo – do que plurinacional (como se revela necessário). Não é possível prolongar por muito mais tempo esta agónica contradição. Espanha é, de facto, um Estado assimétrico com gritantes contradições entre áreas industrializadas (País Basco, Astúrias e Catalunha) e um enorme espaço rural periférico (algumas das outras comunidades autónomas).
Acresce a estas assimetrias de desenvolvimento conflitos políticos históricos que se entroncam, no período moderno, nos carlistas e nos liberais e mais recentemente entre Ditadura e República. A ditadura de Franco baseou-se num enviesado ‘castelhano-centrismo’ e a situação política atual reflete ainda esta situação que se mostra difícil de ultrapassar à custa de medos de que não é estranho o espectro (e a memória histórica) da guerra civil.
A encruzilhada que caracteriza a política espanhola e que se traduz, no presente, numa dramática incapacidade de encontrar uma solução governativa (como as mais recentes eleições gerais demonstram link), existe porque o ‘problema espanhol’ exige profundas alterações de regime para além dos equilíbrios encontrados no período de transição, para as quais a maioria dos ‘espanhóis’ ainda não está (nem foi) sensibilizada. Até ao início deste incontornável diálogo, necessariamente plurinacional, que se revela cada vez mais imprescindível, que deverá provocar mudanças de regime, a Espanha continuará ‘ingovernável’.
O que se passa na Catalunha deverá ser considerado um epifenómeno que vai reproduzir-se de modo telúrico nas 16 comunidades autónomas de Espanha - embora com timings e intensidades diferentes porque se tratam realidades distintas - e para a resolução dos problemas levantados não basta ‘resposta nacional’, mais ou menos 'soberanista', ou então a ‘via judicialista’ (tentada para abafar as pretensões independentistas catalães).
A chave para a resolução do ‘problema espanhol’ é cada vez mais um questão interna baseada nas multinacionalidades existentes e as tentativas de soluções centralizadoras e unitárias (soberanistas) revelam-se incapazes de conduzir a bom porto, pior, correrem o risco de reacender velhas feridas com todos as consequências daí advindas. O período de transição democrática, que se mostra francamente esgotado, foi uma etapa importante da normalização espanhola e deveria ter servido para afastar espectros passados e, desse modo, teria cumprido uma importante tarefa cívica e política de 'normalização democrática'. O que se mostra irrealista é tentar prolongar um período transitório ad eternum como a Direita espanhola pretende.
A democracia não se esgota em eleições, umas atrás das outras, até se obterem resultados ‘favoráveis’ ao partidos políticos (de Direita), isto é, passa também por alterações (constitucionais?) da orgânica política, administrativa, económica, financeira, social e cultural que contemplem a existência de diferentes povos, cujas mudanças têm sido, em ‘Espanha’, evitadas à outrance.
Na verdade, o que se pode esperar da actual situação é a persistência do ‘albergue espanhol’.
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