BOLÍVIA: O ‘golpismo em cascata’ na América Latina ou uma nova ‘Operação Condor’(?)…


O recente golpe de Estado ocorrido na Bolívia que levou à abdicação do presidente Evo Morales vem levantar, mais uma vez, o problema da transparência, da estabilidade política e da senda democrática num vasto território designado por ‘América Latina’.
Evo Morales, ‘cometeu o crime’ de querer conferir a todos os bolivianos - todos! - sejam descendentes dos colonizadores (espanhóis no passado e americanos no presente) os direitos de dignidade cívica e política que incluíam os indígenas (tradicionalmente excluídos e representados pelo ‘movimento cocalero’) e as demais tribos oriundas da civilização maia e dos incas, criando aquilo que foi uma novidade: um Estado Plurinacional.
Tradicionalmente, a liderança política norte-americana costuma resolver estes casos de inclusão e redistribuição da riqueza com golpes de Estado, sejam militares, sejam palacianos, de modo a que uma oligarquia, minoritária, mas detentora da fatia substancial da riqueza, permaneça sem sobressaltos e indemne na liderança política, económica e financeira desses países. Mais uma vez - em 2019 - usando discretas nuances repete-se o 'velho esquema'.

Esta ignominiosa 'cascata de violações dos processos democráticos' traduz uma relapsa situação que se tem verificado num amplo espaço geográfico de influência latina, porque ter sido colonizado por espanhóis e portugueses que aí deixaram as sementes e os vícios de todos dos tipos de ‘golpismo’. Mas tem outro contexto. Na realidade, a dita ‘América Latina’ é o quintal das traseiras dos EUA e as ‘tentações intervencionistas’ têm sido mais do que muitas já que se regem por interesses económicos e estão ao serviço de ideais hegemónicos, que regem as posturas 'imperialistas'.

Convém recordar porque didático – embora possa ser fastidioso - o longo rol de golpes de estado que sucessivamente aconteceram neste Continente. Para economizar razões vamos considerar os putschs, golpes institucionais e palacianos que foram ocorrendo por toda a América Latina desde o fim da II Guerra Mundial (1945). Deixamos de lado as tentativas abortadas e os golpes fracassados e mesmo assim apesar da impressionante listagem corremos o risco de ter coligido um tenebroso cardápio que pode incorrer em erros por defeito.

Tomemos nota de uma ‘cascata’ de golpes (que são mencionados isoladamente mas mereciam uma contextualização mais ampla):
1945 –  Brasil: General Mourão derruba Getúlio Vargas + Venezuela: Rómulo Betancourt derruba Isaías Angarita; 1947 – Nicarágua: General Somoza derruba Leonardo Barreto;  1948 – Venezuela – Junta Militar (presidida por Carlos Delgado Chalbaud) derruba o presidente eleito Rómulo Gallegos + Peru: Manuel Odría depõe Luis Bustamante y Rivero; 1951 – Bolívia: General Hugo Ballivián impede a posse do reformista Vitor Paz Estenssoro; 1952 – Cuba: Fulgêncio Batista toma o poder derrubando o presidente Carlos Prío Socarrás; 1953 – Columbia: general Gustavo Rojas Pinilla assume o poder; 1954 – Guatemala: coronel Carlos Castillo Armas destitui Jacobo Guzman + Paraguai: Alfredo Stroessner inicia uma feroz ditadura. 1955 – Brasil: general Henrique Loft afasta o presidente interino Carlos Luz + Argentina: Junta militar (‘Revolução Libertadora’) derruba Juan Perón; 1957– Columbia: Gustavo Pinilla é deposto por uma ‘Junta Militar’ que leva ao poder o general Gabriel París Gordillo; 1958 – Venezuela: Perez Jimenez é derrubado e substituído pelo almirante Wolfgang Larrazabal; 1959 – Cuba: queda de Fulgêncio Baptista e vitória da insurreição revolucionária popular liderada por Fidel de Castro; 1962 – Argentina: o presidente Arturo Frondizi é derrubado por uma ‘Junta Militar’; 1963 – Guatemala: o presidente Miguel Fuentes é derrubado pelos militares liderados pelo coronel Peralta Azurdia + Republica Dominicana: o presidente Juan Bosch é deposto por um golpe militar liderado pelo coronel Elias Wessin + Equador: Golpe militar derruba o presidente Carlos Julio Arosemena + Peru: Golpe militar derruba o presidente Ricardo Pérez Godoy + Honduras: Golpe liderado pelo general Osvaldo Lopez Arellano derruba o presidente Ramon Villeda Morales. 1964 – Brasil:  Derrube do presidente João Goulart e início da ditadura militar + Bolívia: Derrube do presidente Vitor Paz Estenssoro por um golpe liderado pelo general Barrientos; 1966 – Argentina: Presidente Arturo Illia é derrubado pelo general Juan Carlos Onganía; 1968 – Panamá: Presidente Arias Madrid é derrubado pelo general Omar Torrijos + Peru: Presidente Belaúnde Terry é derrubado pelo general Juan Velasco Alvarado; 1969 – Brasil: Novo golpe militar - a ditadura militar brasileira tem um 2º. folego e impede a assunção do cargo presidencial, por incapacidade física do marechal Costa e Silva, ao vice-presidente civil Pedro Aleixo, nomeando uma junta militar provisória e posteriormente entregam o poder ao general Garrastazu Médici; 1970 – Bolívia: após a morte do general Barrientos há uma série de golpes e contragolpes militares que terminam com a instituição de uma ditadura militar liderada pelo coronel Hugo Banzer. 1973 – Chile: golpe de Estado militar que derruba o presidente Allende e inicia a ditadura do general Pinochet + Uruguai: o presidente Juan Bordaberry consuma um golpe palaciano em conjugação com o sector militar. 1975 – Peru: o general Francisco Morales Bermúdez derruba o presidente Alvarado; 1976 – Equador: Uma nova junta militar liderada por Alfredo Poveda (Marinha), Guilhermo Durán (Exército) e Luís Leoro (Aeronáutica) depõe o general Rodriguez Lara e inicia uma 2º. fase do regime militar + Argentina: uma Junta militar liderada por Videla, Massera e Agosti derruba ‘Isabelita’ Péron e institui uma ditadura militar; 1979 – El Salvador: Junta civil-militar depõe o general presidente Carlos Humberto Romero e lança o país numa guerra civil; 1980 –Bolívia: o general Luis García Meza Tejada destitui a presidente Lídia Tejada e dá início a um período de ‘narco-ditadura’ boliviana; 1983 – Granada: golpe militar liderado pelo general Hudson Austin e contra-golpe com invasão do país pelos EUA; 1991 – Haiti: O presidente Jean-Bertrand Aristide é deposto por um golpe de Estado liderada pelo general Raoul Cédras. 1992 – Peru: ‘autogolpe’ de Alberto Fujimori com a suspensão do exercício dos órgãos democráticos peruanos; 2000 –Equador: Golpe de estado contra o governo de Jamil Mahuad liderado pelo coronel Lúcio Gutierrez. 2005 – Equador: novo golpe de estado derruba o presidente Lúcio Gutierrez sendo substituído por Alfredo Palacio; 2016 – Brasil: Golpe de estado institucional (‘impeachment’) depõe a presidente eleita Dilma Rousseff. 2019 – Bolívia: Golpe de estado das força militarizadas e policiais conjugado com a oposição contra o presidente em exercício Evo Morales.

Trata-se de uma lista de tirar o folego. E o mais importante é que todos estes golpes têm uma história pregressa que merece ser dissecada mas que não cabe no âmbito deste post. Há, contudo, contextos internacionais e particularidades regionais e locais mas, acima de tudo, verifica-se a presença de denominadores comuns que congregam múltiplos interesses, uns mais visíveis, outros mais ocultos, que serviram para despoletar as sucessivas interferências nos processos governativos em diferentes (múltiplos /quase todos) países na América Latina.

Um dos exemplos que permanece na obscuridade e merece análise – porque será provavelmente um dos primeiros golpes de estado arquitetado pela CIA na América Latina - é o caso da Guatemala que, em 1954 (para continuarmos nos limites temporais que delimitamos), foi vítima de ‘invasão’ de forças oriundas das Honduras e Salvador, comandadas pelo coronel Carlos Castilho Armas que se fez eleger presidente da República.
Castillo Armas derrubou o presidente Jacobo Arbenz Guzmán que tinha iniciado uma série de reformas económicas e sociais nomeadamente no âmbito da posse das terras (um problema candente em todo este continente), no sentido de promover uma reforma agrária. A intervenção militar desenrola-se para defender os interesses da United Fruit Company estabelecidos à sombra da ‘Doutrina Monroe’ (séc.XIX) que a administração Eisenhower/Foster Dulles julgava estarem em risco. O argumento foi o recorrente: a Guatemala tinha caído na órbita de influência soviética.

A ressaca da destituição do presidente Arbenz motivou uma catadupa de intervenções militares teve consequências humanitárias devastadoras sendo possível contabilizar ao longo de quase 3 décadas cerca de 250.000 mortos e desaparecidos. A situação na Guatemala nestes tempos era deveras paradigmática. Três quartos da população guatemalteca controlavam 10 % das terras enquanto a United Fruit tinha concessionadas mais de 50% das terras aráveis. O golpe de Estado manteve a Guatemala dentro dos parâmetro definidos pela ‘Doutrina Monroe’, isto é, manter os EUA como o beneficiário monopolista da América Central e para isso não hesitou em criar uma nova figura de neocolonialismo do pós-guerra que perdurou nos tempos como a ‘República das Bananas’.

Adiante, nos anos 70, a América Latina completamente subjugada por regime militares, todos ‘golpistas’, monta, de parceria com a CIA e a Administração americana, a tenebrosa ‘Operação Condor’. Esta operação nasce da reação americana à revolução cubana (1959) e visa combater sem quartel e a qualquer preço as ideias socialistas e comunistas na América Latina.
Retira a luta ideológica (contra o denominado ‘movimento comunista internacional’) do campo político e transfere-a para a área militar que, em conformidade, cria organismos de permuta de informações, centros de interrogatório e tortura e os conhecidos ‘esquadrões da morte’.

Paralelamente, instalam-se na continente americano múltiplas ditaduras, sob a tutelar presença da manu militari. Inicialmente, os militantes da operação Condor agrupam serviços secretos militares do Chile, Argentina, Bolívia, Uruguai, Paraguai e Brasil, mas a sua 'missão' é estenderem-se por todo o subcontinente, sob o alto patrocínio de Washington.
O balanço, para  além dos golpes de Estado direta ou indiretamente promovidos é um largo cortejo de atos anti-humanitários, que resultaram no ‘desaparecimento’ de mais de 60.000  opositores (nem todos eles comunistas), na década de 70 a 80, todos eles vitimas de arbitrarias detenções, kafkianos interrogatórios e vis torturas.
Todo este rol de tropelias foi justificado pelo combate ao comunismo (que aprioristicamente caracterizavam como ‘terrorista’ e feito de maneira hipócrita e contornos de malvadez em nome da democracia e da defesa de sacrossantos ‘valores ocidentais’).

Hoje, passado mais de meio século desta 'cascata golpista', os mais recentes acontecimentos na Bolívia (que levaram à destituição do presidente em funções Evo Morales), colocam-nos perante a angustiante inquirição se uma ‘nova Operação Condor’ não estará em marcha (?).

Comentários

Ia lá pensar que foram tantos os golpes de Estado!

E ando atento.

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