A laicidade é uma condição de sobrevivência civilizacional
A luta partidária nos países democráticos, com a necessidade de atrair votos, tem levado os Estados laicos à cumplicidade com as religiões, ultrapassando a garantia da liberdade de culto, que é dever preservar, e subordinando-se aos interesses da religião dominante.
A globalização trouxe consigo a possibilidade de expansão dos
credos à escala mundial, aspiração de todos os apóstolos, que odeiam a
concorrência. Na Europa os cristãos ortodoxos procuram manter privilégios
ancestrais e reconquistar os países da ex-URSS; o Vaticano, até à chegada do
Papa Francisco, pretendeu opor um dique ao islão, atrair os anglicanos, recriar
países católicos à custa do desintegração da Jugoslávia e radicalizar a fé em
outros países europeus, sem deixar de combater o secularismo e a laicidade; as
seitas evangélicas entram no mercado da fé, à escala global, enquanto o Islão,
ressentido com o seu atraso e o fracasso da civilização árabe, procura
islamizar o mundo à bomba.
Se os crentes das várias religiões se limitassem a salvar a
alma dos que acreditam tê-la, sem obsessão de salvar as dos que não creem, tudo
ficaria calmo. Nenhum cético, ateu, livre-pensador ou agnóstico se interessa
pelo número de orações que os crentes rezam, pelos jejuns a que se submetem, a
abstinência que guardam ou os interditos alimentares e sexuais que se impõem. O
problema reside no desvario prosélito de tentarem converter todos os outros, convictos
de cumprirem a vontade do deus que lhes impuseram.
A Física, a Química e a Biologia, por exemplo, todos os dias
mudam e enriquecem com novas descobertas. As ciências, apesar do azedume das
religiões, progridem a um ritmo que deixa a fé, desorientada, a ruminar livros
antigos e velhos preconceitos.
O horror clerical ao secularismo só rivaliza com a aversão
dos papas ao preservativo. Os judeus, menos de 20 milhões, ainda reclamam a
herança divina da Palestina para as suas tribos. Os islamitas, desesperados,
agarram-se ao Corão como náufragos a uma jangada, sem espírito crítico, com ódio
ao progresso, à liberdade individual e à modernidade.
A re-islamização da Turquia foi o desígnio de Erdogan contra
o espírito laico das elites, uma obsessão do atual primeiro-ministro adepto dos
tapetes para as orações. A Espanha enfrentou, com B16, a fúria papal que a
queria devolver ao redil do Vaticano e é vítima do assédio do islamismo que a
pretende transformar em novo califado.
Ai da Europa, ai de nós, da liberdade, da herança do
Iluminismo e da modernidade, se os Estados, com a conivência de uma esquerda pouco
inteligente e de uma direita beata, abdicar da laicidade e deixar o fanatismo
religioso à solta numa sofreguidão prosélita.
Sem laicidade, imposta sem subterfúgios, a Europa das Luzes
pode regredir e tornar-se o espaço beato onde o poder democrático ceda o lugar
à vontade do deus que ganhar a batalha da fé pela força das armas e pelo
terror.
A insânia acaba de chegar ao Supremo Tribunal dos EUA onde os
juízes-conselheiros republicanos se propõem, após 49 anos, anular o direito ao
aborto, num ato misógino e de indiferença pia pela autodeterminação sexual da
mulher.
É um enorme retrocesso civilizacional numa democracia que
não cessa de nos assustar.
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