A liberdade e os seus limites
Há muitos anos que reflito sobre a liberdade e, há muitos mais, que me empenhei na sua defesa. São mais de seis décadas, com obstáculos no percurso, de uma obsessão que me acompanhará até ao fim.
Hoje, depois de quarenta e oito anos de democracia liberal,
ultrapassado o tempo que os esbirros da ditadura levaram a espiar, perseguir e
ostracizar os democratas, e a acossar a liberdade, é o espírito censório que regressa
por intermédio de quem se julga detentor da verdade e deixa quebrar o verniz de
democrata.
Engana-se quem pensa que a democracia é um regime benquisto,
que a liberdade é uma conquista irreversível, que a censura está obsoleta, que
à livre expressão de ideias basta a consagração constitucional. É uma perigosa
ilusão.
Quando vemos a opinião publica a constranger a liberdade e
assistimos a uma aliança de forças contraditórias concertada na defesa das
mesmas posições, sentimos o fascismo a regressar de mansinho. O unanimismo é o
caminho para o pensamento único, a desculpa para a ‘união nacional’, o pretexto
para o combate à diferença e a ilegalização do erro.
Quando velhos democratas acossam os adversários políticos,
revelam a sua fragilidade democrática. A democracia não adoece, mas os
democratas tornaram-se enfermos.
Há um adágio que sempre me irritou pela pusilanimidade que
encerra, pelas portas que abre à repressão: «A minha liberdade acaba onde
começa a dos outros».
Era o que faltava! Até ponho a coisa ao contrário. Só
faltava que, para não ferir os meus sentimentos e as minhas convicções, não se
pudesse dizer mal da República, do ateísmo e da social-democracia, v.g., ou
recorrer à caricatura, à troça e ao sarcasmo!
Quando alguém apela ao respeito por determinada crença ou
ideologia apenas pretende limitar a liberdade de expressão, dos outros, em
relação ao que defende. Posso ofender alguém sempre que manifesto pontos de
vista que divergem dos seus, mas não admito o silêncio para não desagradar, e
não deixo de ser amigo de quem quer que seja por divergências religiosas,
políticas, filosóficas ou outras.
A exigência de respeito por convicções alheias não passa de
um apelo à censura e de um incómodo com a liberdade. Uma peregrinação, um desfile
militar ou sindical, ou um ato litúrgico, são tão passíveis de escárnio quanto
um comício partidário ou uma cerimónia fúnebre. Uma Igreja é tão passível de
troça quanto um clube de futebol ou um partido político, embora seja imprudência
gritar vivas a um clube próximo da claque adversária, oferecer febras de porco à
porta de uma mesquita ou acusar a inutilidade dos sacrifícios pios através dos
altifalantes de um santuário.
E, sobretudo, são provocações gratuitas e idiotas.
Em 13 de maio de 2008 a maratona pia a Fátima, presidida por
um português, o cardeal Saraiva
Martins, foi realizada sob o lema “contra o ateísmo”. Podia ser “pela fé”, mas
o desvario místico preferiu uma proposição belicista. Os patrocinadores do
evento tinham o direito de rezar contra a ideologia que condenam? Claro que
tinham. Não recorreram a armas, não lapidaram infiéis, não degolaram incréus
nem molestaram os céticos. Dezenas de milhares de terços disparados contra o
ateísmo, o desfile belicista com velas acesas e cantorias, tudo de resultados
duvidosos, foi o exercício de um direito.
Já devíamos estar curados de sensibilidades doentias que a
ditadura legou, mas parecem ter chegado as recidivas. O único limite à
liberdade de expressão é o que o código penal da democracia considere crime. O
resto é vocação e devoção censória.
Ponte Europa / Sorumbático
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